quarta-feira, 13 de julho de 2022

(Re)Assistindo: Thrillers Históricos Questionáveis (porém fascinantes) da Hammer Films

The Terror of the Tongs (1961)
com Christopher Lee, Yvonne Monlaur, Geoffrey Toone, Marne Maitland, Brian Worth, Ewen Solon, Roger Delgado, Richard Leech, Marie Burke, Barbara Brown, Burt Kwouk

A galera que ainda acha que é mimimi quando atores asiáticos reivindicam exclusividade na escalação para papéis de sua própria etnia deveria assistir um pouco mais a filmes antigos. Quando você se dá conta de que quase todos os papéis orientais relevantes de A Seita do Dragão Vermelho são interpretados por caucasianos usando yellow face e que a maioria dos legítimos atores asiáticos do elenco está restrita à figuração e/ou um ou outro papel sem falas, fica difícil não cair a ficha de que essa galera tem sim muito, mas muito motivo para ficar puta. Chega a ser nonsense. São vários os momentos em que você tem atores orientais e atores brancos maquiados como orientais contracenando numa mesma cena e você sabe certinho, de antemão, quem vai abrir a boca e quem vai entrar mudo e sair calado. É meio embaraçoso até.😶 Ainda que a gente tentasse deixar a questão racial de lado, mesmo em termos técnicos e objetivos esse tipo de coisa prejudica nossa imersão no universo proposto. Notem que não estamos falando de um filme ruim, ao contrário, é um dos meus favoritos pessoais da Hammer Films, belissimamente fotografado e com uma trama de suspense elegante e sólida, mas esse constante duelo entre rostos maquiados e não-maquiados acaba, inevitavelmente, nos remetendo para as instâncias extra-filme. Você se pega pensando no presumivelmente tenso convívio entre os diferentes grupos de atores, na hierarquia implícita na própria escala da cadeira do maquiador de todas as manhãs, no silêncio constrangido quando algum ator inadvertidamente evidenciava um preconceito ao escolher um determinado tom de voz, uma determinada postura. E como terá sido o dia em que Yvonne Monlaur brotou no set só com aquele lapisinho maroto nos olhos? A mestiça chinesa mais francesa de Hong Kong? Alguém achava mesmo que o estúdio ia "estragar" a beleza da mocinha do filme?🙄 É, bicho... não sabem do mimimi a metade.😏

com Guy Rolfe, Allan Cuthbertson, Andrew Cruickshank, George Pastell, Marne Maitland, Jan Holden, Paul Stassino, Tutte Lemkow, Ewen Solon, Marie Devereux, Roger Delgado, Warren Mitchel

E já que tocamos no assunto dos filmes etnicamente questionáveis da Hammer Films, Os Estranguladores de Bombaim, de 1959, é uma verdadeira pérola. Há até quem diga que The Terror of the Tongs foi uma espécie de remake, trocando só de colônia, da Índia para Hong Kong, e faz todo sentido. Ambos aparentam justificar o intervencionismo britânico por uma suposta via humanitária, tipo: tadinhos dos indianos e honcongueses que não conseguem se livrar sozinhos de suas tongs de ópio e, no presente caso, de suas seitas de thuggees fanáticos adoradores de Kali. É preciso o abnegado herói britânico para salvar os pobres primitivos de si mesmos e garantir uma assimilação segura à grande irmandade da civilização ocidental. É um formato clássico que, na literatura, chegou a receber a tag de "gótico imperial" e conta com expoentes de peso, como Rudyard Kipling, claramente uma grande inspiração aqui. Antes, porém, que uma galera mais afobada já saia por aí cancelando Kipling,🙄 vale lembrar que é justamente esse tipo de material que nos permite extrapolar a geopolítica em busca de um olhar mais íntimo e profundo sobre as estranhas e complexas relações entre dominados e dominadores, o choque de culturas, os contágios que se atravessam mutuamente, o cotidiano e convívio humanos submetidos a forças por demais titânicas e abstratas para permitir uma reação adequada. A vontade do império: tão vasta e incognoscível quanto a dos próprios deuses. Toda a obra de Kipling se realiza nessa volátil encruzilhada de perplexidade civilizatória e mal-estar sócio-cultural e se, por um lado, os filmes da Hammer não chegam nem perto dessa complexidade (nem tinham intenção de fazê-lo), ainda assim me parecem bem menos maniqueístas do que qualquer lançamento da Marvel de todo ano. Talvez porque o império britânico sempre teve um gosto pela ambiguidade e um senso de auto-ironia que faltam ao império americano.😉
com Christopher Lee, Barbara Shelley, Francis Matthews, Suzan Farmer, Dinsdale Landen, Derek Francis, Joss Ackland, Alan Tilvern, John Welsh, John Bailey

Mas claro que em matéria de apropriações étnico-históricas questionáveis para fins de entretenimento, não há nada que se compare a quando a Hammer Films fez a proeza de contar a história de Grigori Rasputin e sua influência sobre o governo czarista SEM MENCIONAR NEM UMA VEZ a Segunda Guerra Mundial e a Revolução Russa! É de uma cara de pau que chega a ser admirável.😅 Dito isso, e reiterando (pra não haver dúvida) a absoluta falta de compromisso histórico do roteiro de Anthony Hinds, o fato é que Rasputin, O Monge Louco é um dos melhores filmes do estúdio. Contraditório? Sem dúvida, e esse é justamente o ponto de se trazer à baila filmes assim. É claro que eu nunca me atreveria a debater com um russo ou mesmo com um historiador, mas não há como negar o mérito artístico de filmes como Rasputin (ou mesmo dos já citados The Terror of the Tongs e The Stranglers of Bombay) no que concerne às suas qualidades enquanto cinema e, mais especificamente, na sua efetividade como um thriller de época no contexto de uma empresa que, afinal de contas, era especializada em filmes de horror, não em dramas históricos. Nesse sentido, o Rasputin de Christopher Lee é MUITO mais assustador do que seu Drácula.😳 Há até quem diga que foi sua melhor performance para a Hammer e eu tendo a concordar. Chega a ser irônico o contraste entre esse demônio carismático e o conde mudo de Dracula, Prince of Darkness (filmado back-to-back, reparem como até os cenários são os mesmos). É visível o quanto o tio se divertiu com um vilão mais descolado, bom de copo, farrista e, ao mesmo tempo, implacável, capaz de roubar a alma de seus inimigos usando nada mais que seu próprio magnetismo. Seria triste jogar um trabalho desses fora por conta das inconsistências históricas, por mais questionáveis que sejam (e são). Certa vez, a filha de Rasputin em pessoa disse que Lee tinha "a expressão de seu pai". Não deixa de ser um tipo de validação adequada.😉



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