quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

(Re)Assistindo: Algumas facetas do Cinema Gótico Brasileiro

Christabel (2018)
com Milla Fernandez, Alexandre Rodrigues, Julio Adrião, Nill Marcondes, Camila Molica

Que surpresa esse Christabel.🥀 Em todos os sentidos. Quem imaginaria uma adaptação brasileira do célebre poema de Samuel Taylor Coleridge? E que o enredo se harmonizaria tão bem com a ambientação no cerrado goiano a ponto de mal parecer precisar de recontextualização? Admito que por essa eu não esperava. E deveria, afinal tenho um dossiê gigante no blog sobre as adaptações cinematográficas de Carmilla e, agora, cá estou eu matutando se não seria o caso de atualiza-lo.🤔 Tecnicamente não, são obras diferentes, mas o fato é que o clássico de Sheridan Le Fanu bebe tão profundamente dos versos de Coleridge que, no fim das contas, é quase como se o filme fosse uma adaptação livre de Carmilla, mais até do que várias das versões ditas como oficiais (e a ideia de uma Carmilla brasileira é simplesmente deliciosa demais pra não levar em consideração🥰). Enfim, seja como for, esse é um problema (semântico) meu pra resolver, o foco do diretor (que, aliás, demonstra uma noção estranhamente vaga sobre a obra de Le Fanu em algumas entrevistas, chegando a se referir a Carmilla como "um outro poema"🤨) é declaradamente Christabel, e nisso duvido que qualquer amante de horror gótico ou mesmo da tradição lésbica do cinema vampírico em geral encontre qualquer motivo pra reclamar. Lorena Castanheira (que também é produtora do longa) arrasa como a proto-Carmilla Geraldine, sustentando maravilhosamente a ambiguidade de uma narrativa de múltiplas camadas que é sagaz o bastante para nunca fechar as possibilidades interpretativas daquilo que, afinal, é uma obra em aberto (Coleridge jamais terminou o poema). Mas Milla Fernandez é quem segura o coração da audiência em suas mãos, tal qual uma manga madura, nos levando a sair da sessão convictos de que Christabel nunca foi uma devota mocinha inglesa, que sai pra rezar nos bosques de carvalho, mas sim uma linda cabocla goiana, seduzindo a sua dama vampira sem nada de pecado e com gosto de maçã.😉 É "gótico caboclo" que chama?
com José Mayer, Vera Fajardo, Palmira Barbosa, José Luiz Nunes, Neimar Fernandes, Ary Fontenelle, Ezequias Marques, Lígia Lira

Mas ainda que se possa brincar com terminologias jocosas tais como "gótico caboclo", o fato é que o horror brasileiro sempre jogou por suas próprias regras. Filmes que abraçam os pressupostos da tradição gótica a sério, como Christabel, sem o escracho de um Zé do Caixão ou o deboche de um Ivan Cardoso, são e sempre foram muito raros. É por isso que obras como essa, do Carlos Hugo Christensen, se destacam tanto (ou, ao menos, deveriam se destacar). Tirando o título, que meio que segue as regras de "chamariz de marquise" típicas da Boca do LixoA Mulher do Desejo é um horror gótico sem tirar nem pôr. Uma história de maldições ancestrais, possessão e bruxaria, ambientada num casarão colonial mal-assombrado na mais gótica das cidades brasileiras, Ouro Preto/MG. É quase perfeito demais. Meio que nos faz imaginar um pastiche, algum tipo de derivação, impressão reforçada pela trama talvez similar demais a The Haunted Palace do Roger Corman, com a Vera Fajardo assumindo o papel da dama gótica atormentada pela lenta e inexorável transformação de seu marido na odiosa imagem do falecido tio, ambos vividos por um José Mayer no auge de sua forma. Mas não se enganem, há coisas em A Casa das Sombras (título alternativo meio genérico, mas sem dúvida mais apropriado) que eu, sinceramente, nunca vi parecido em nenhum outro lugar. Um uso extremamente esperto das sombras como elementos cênicos, deslizando pelas paredes, passando por debaixo das portas e até escorrendo pelo teto para engolfar os personagens. Rangidos e estalos de madeira velha que parecem sugerir algum tipo profano de respiração, como se a casa em si tomasse fôlego e se preparasse para despertar. É o tipo de coisa que compensa lindamente as ocasionais limitações dos orçamentos paupérrimos típicos não só do cinema brasileiro mas do cinema gótico em geral, e que connoisseurs, tais como nós, simplesmente vivem para garimpar. Até em VHSrip, a mais legítima maldição dos eternamente não remasterizados clássicos do cinema nacional.
com Helena Albergaria, Djin Sganzerla, Sílvio Restiffe

Agora, se entendermos a abordagem gótica como um prisma capaz de adensar os aspectos mais melancólicos da condição humana, a mortalidade, a perda, a solidão, incomunicabilidade, memória, os humores sombrios que se manifestam nos interstícios entre a lógica, razão e crença, nossos mais legítimos fantasmas, então Walter Hugo Khouri pode ser considerado como o pai de um certo tipo de sensibilidade urban gothic que, de um modo ou de outro, atravessa boa parte da produção do horror brasileiro atual. Khouri, obviamente, não era um autor do gênero, ainda que tenha dirigido duas obras-primas do horror gótico que, até hoje, nunca foram remasterizadas, As Filhas do Fogo e O Anjo da Noite (recomendo até a morte, mesmo nos releases medonhos ripados de gravações de TV disponíveis na rede), mas todos os seus filmes são, de certa forma, assombrados, fantasmagóricos. Seus personagens, pra todos os efeitos, são fantasmas, vagando por uma contemporaneidade artificial, incompreensível e ameaçadora, algo que ressoa de forma particularmente forte com uma nova geração de prodígios do horror nacional, em geral de classe média urbana, que não se identifica necessariamente com o legado de um Zé do Caixão, nem se encaixa muito bem numa pegada rural a la "gótico caboclo" (se é que existe tal coisa). Dentre essa galera, a dupla Juliana Rojas e Marco Dutra talvez seja a que mais possa se declarar como uma espécie de herdeira natural dessa insólita tradição gótica khouriana. E a semente estava aqui, nesse curta de 2009, concebido como um exercício cênico sobre aquele que, pra mim, é uma das maiores joias do gótico brasileiro, ainda que, tecnicamente, nem seja um filme de horror, o magnífico As Deusas de 1972. Daí segue-se uma notável trajetória de pérolas do horror brasileiro, tanto em parceira quanto em projetos individuais, que vão desde curtas como O Duplo e Para eu Dormir Tranquilo, até longas como Trabalhar Cansa, Sinfonia da Necrópole e os geniais As Boas Maneiras e Quando eu era Vivo. Melancolia gótica das mais refinadas, para curtir nas selvas de pedra do neoliberalismo tupiniquim.


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