sexta-feira, 14 de março de 2025

Necromancy (1972): Entre as razões erradas... e as razões erradas...


Já tive chance de comentar sobre a minha "teoria" dos dois tipos de filmes ruins. Grosso modo, o filme medíocre, que não cheira, nem fede, e mal parece justificar sua existência, e o filme que fracassa em suas pretensões, mas resulta num desastre interessante, as vezes até mais do que um filme bom. Mas acho que dá pra incluir um terceiro tipo: filmes que a gente não consegue decidir se são bons ou ruins. Ou, colocando de outra forma, filmes que têm elementos que são fascinantes, que nos impactam, que ficam na cabeça, mas você não sabe dizer se foram feitos de propósito, ou se foi apenas o resultado de um acidente feliz. Parece estranho? Talvez porque você nunca tenha visto Necromancy, de Bert I. Gordon.

Necromancy AKA Nec'ro-Man'cy (1972)
Até o pôster é difícil dizer se é bom ou não.😅
Tem outros, é claro. Muitos, na verdade. Mas Necromancy (1972) é um exemplo que me encanta. Se você fizer uma rápida pesquisa, terá dificuldade de encontrar quaisquer elogios a respeito dele, em especial por parte dos profissionais diretamente envolvidos. Pamela Franklin costumava dizer que a única coisa boa que resultou dele foi ter conhecido o marido, Harvey Jason, no set de filmagens. E os biógrafos não hesitam em afirmar que Orson Welles só assinou o contrato por conta do dinheiro. Só que, independente de qualquer coisa, estamos falando de Pamela Franklin e do Orson Welles! Caramba, o Orson Welles!🤯 O grande e terrível, no papel de um sumo-sacerdote de um coven satanista em plenos anos 70! Como não empolgar com um negócio desses?!

Só isso já bastaria para dar o benefício da dúvida. E mesmo que fosse um desastre completo, já valeria uma nota de rodapé nos anais do gênero. Mas ouso dizer que está longe de ser um desastre completo, embora eu não possa descartar que seja um desastre incompleto. Confuso? Ok, vamos por partes (o que, nesse caso, é quase literal).

Lori (Pamela Franklin), justificando ter
nascido coberta pela coifa das feiticeiras.
Em termos de enredo, Necromancy pode muito bem soar medíocre. Em linhas gerais, conta a história de uma jovem, Pamela Franklin, que se muda para uma simpática (e esquisita) cidade do interior, quando o marido (Michael Ontkean, muito antes de passar no concurso pra xerife de Twin Peaks) arranja um trampo numa fábrica de brinquedos, estranhamente gerida pelo sinistro Sr. Cato (o grande e terrível em pessoa). Não demora pra que mocinha se ligue que Cato não gerencia só a fábrica, mas a cidade em si, e que todos os habitantes fazem parte de seu coven de adoração satanista. Cato tem um objetivo: trazer o filho de volta a vida, mas pra isso ele precisa de alguém especial. Alguém que não apenas sentiu na pele a dor da perda (no caso, por conta de um recente aborto espontâneo) como também nasceu coberta pela coifa das feiticeiras, e está disposta a ser "convencida" a realizar até as últimas consequências o ritual da necromancia: uma vida por outra vida.

Parece meio medíocre, né? Um arzinho de Bebê de Rosemary, a típica paranoia setentista (o marido seria só um bocó ou estaria mancomunado com os bruxos desde o começo?), e você meio que antecipa onde a coisa vai dar só de ler a sinopse. E não estaria errado, é meio isso mesmo. Mas, quando se trata de arte, o caminho do ponto A para o ponto B pode, por vezes, ser muito mais tortuoso e interessante do que o que foi escrito no roteiro. E nenhuma sinopse pode realmente dar conta do estranho efeito que Necromancy parece causar ao ser assistido assim por acaso, na solidão insuspeita de uma madrugada maldita.

O VHS da Look Video que nunca cheguei
a locar na época. Pena, teria seria bom
pra comparar com a versão do bluray.
Pra começo de conversa, devo admitir que nem sei muito bem qual versão assisti. Quer dizer, sei que foi a do bluray, mas não sei se a versão do bluray é de fato a original. Necromancy é um desses títulos que caíram numa espécie de limbo de disputas por direitos e distribuição, e, dependendo de onde você for buscar informações, vai ouvir falar de, desde dois, até quatro cortes diferentes! No mínimo, temos uma versão de cinema de 1972, e um relançamento em 1983 com outro título, The Witching, que acredito que seja a fonte do VHS que circulava no Brasil na época.

Os reviews online indicam que The Witching tinha bem mais nudez e apelação, o que me leva a crer que o bluray seja de fato a versão original. Mas... é esquisito. A montagem é meio bizarra e bastante confusa, como se houvesse sempre alguma coisa faltando entre uma cena e outra. As cores são esmaecidas, o que dá ao filme um ar de fita velha e desbotada. É provável que a remasterizarão não tenha sido mesmo lá essas coisas, afinal era só uma edição especial limitada de mil cópias, lançada pela Code Red, mas isso não nos diz muito sobre até que ponto esse corte se aproxima ou não do que era pretendido pelo diretor. Até onde sei, pode muito bem ser um caso de "foi o que deu pra juntar ", ou mesmo um híbrido de várias versões diferentes.

O ponto é que... funciona! Quer dizer... tá, vamos ser prudentes: pra mim funciona. Não vou me meter a besta de discutir com os trocentos reviews que li por aí, definindo a montagem simplesmente como "tosca". Talvez seja, mas... não sei. Peguemos de exemplo a sequencia em que Pamela Franklin vai a uma festa pra conhecer melhor seus novos amigos e vizinhos. Dê um play no vídeo abaixo e reflita aí se a palavra que melhor define seria "confuso" ou "desorientador".


Ok, pode ser "chapado" também.😅

Antes que alguém pense que essa é só uma "cena de sonho", já adianto que o filme inteiro segue mais ou menos nessa pegada. As coisas acontecem aos trancos, e, aparentemente "queimam etapas" do que poderia ser o desenvolvimento narrativo da personagem. A gente já sabe, desde o início, qual é o plano de Cato. Ele mesmo conta pra Lori logo no primeiro terço, dizendo o que pretende, e qual o papel que é esperado dela. Ela recusa, claro, e, em princípio, esse seria o caso daquelas típicas narrativas ocultistas, em que a protagonista vai sendo, pouco a pouco, manipulada e conduzida até acabar realizando o tal do sacrifício que todos esperam dela. Ponto A -> Ponto B. Acontece que não vemos esse "pouco a pouco" acontecer. Quer dizer, não exatamente. A cada corte, cada mudança de cena, Lori está mais perto do ponto B, sem que entendamos muito bem como ela chegou lá, como cada etapa se conecta com as anteriores, ou mesmo as posteriores, que, por vezes, parecem invertidas. Quando nos damos conta, Lori já está lá, realizando a porra do ritual, e você se pergunta: "como essa merda chegou a esse ponto?"

Orson Welles, o grande e terrível,
no meio do seu harém coven.
Não sabemos. Mas o interessante é: Lori também não sabe. E em vários momentos, a personagem parece consciente dessa estranha descontinuidade. Não sempre, senão seria fácil dizer que é proposital. Muitas vezes a impressão é só de cortes bruscos e cenas faltando, mas em outras a nossa confusão se reflete na desorientação da protagonista. No seu melhor, Necromancy parece emular um pesadelo. Aquele tipo de sonho em que você se vê fazendo coisas que não quer fazer, indo a lugares onde não quer ir, dizendo coisas que não sabe porque diz, e acorda se perguntando o que diabos foi tudo aquilo. Lori se pergunta. Muitas vezes. Enquanto investiga, enquanto confronta o marido e os adeptos da seita, enquanto planeja sua fuga, só pra, no momento seguinte, se ver no meio de outra esquisitice, sem saber como foi parar lá. É angustiante, mas também meio frustrante. E, definitivamente, desorientador.

Ou só confuso? Pois é, pode ser. Confuso, picotado, tosco. Não tenho tanta evidência assim pra teimar o contrário. A própria filmografia de Bert I. Gordon não corrobora uma narrativa que tenha sido feita intencionalmente dessa forma. Ele era um diretor da velha guarda, conhecido por filmes de fantasia bem lineares e cheios de efeitos extravagantes, como Village of the GiantsThe Amazing Colossal ManAttack of the Puppet People. Até seu celebrado Tormented, de 1960, é um terror levinho, mais interessado em deslumbrar a audiência com trucagens de cabeças flutuantes do que causar qualquer tipo de desorientação.

Pamela Franklin voa?
Se o diretor tem um fraco por trucagens
de sobreposição de tela, voa.😊
Como um projeto tão perturbador e niilista foi cair logo na mão dele? O espírito do tempo, talvez? Bom, se é assim, ao menos não dá pra dizer que ele não faz jus. Necromancy é o mais puro suco do revertério contra-cultural pós Charles Manson, e Orson Welles impõe respeito como um Aleister Crowley hippie, se é que a intenção era essa. Representar o delírio das seitas e comunidades alternativas que se tornaram parte dos pesadelos da América naquele período específico do tempo? A visão de um diretor de meia idade, veterano de filmes bobos e divertidos, feitos para toda a família, sobre uma série de fenômenos que lhe escapam à compreensão, e que não poderia expressar de outra forma se não num pesadelo labiríntico que, não por acaso, culmina num beco sem saída?🤔

Não que eu ache que ele tenha embarcado nessa por iniciativa própria. É mais provável que tenha pego o bonde que estava disponível no momento ("Monstros gigantes, Bert? A onda agora é witchploitation!"). Cinco anos depois, lá estava o bom e velho Gordon de volta aos ratos e galinhas gigantes no (aí sim) indefensável The Food of the Gods, de 1977. E ainda convenceu a Pamela Franklin a trabalhar com ele de novo! Talvez Necromancy não tenha sido tão ruim assim, afinal😅.

E, quer saber? Não é mesmo. Naquele meu textinho sobre os dois tipos de filmes ruins, eu dizia que o que realmente importa é não ser bege. E isso Necromancy definitivamente não é! Quer dizer... a fotografia até que é, mas esse não é o ponto.😅 Falando sério, queria muito poder vê-lo numa remasterização que resgatasse a paleta de cores que a gente pode intuir a partir dos lobby cards, mas mesmo da forma esmaecida que está agora, o filme me pega! O bastante pra inspirar toda uma postagem especulando se é inadvertidamente bom ou mesmo propositalmente ruim. E não faz a menor diferença. Gombrich costumava dizer que "não há razões erradas pra gostar de uma obra de arte", mas, com certeza, "há razões erradas para não gostar". Na dúvida...😉



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