"Num dia como hoje, o inferno todo está solto dentro de sua cabeça. Lúcifer nasceu em um dia assim, em uma desolação como esta. Com apenas fogo e chamas e fumaça em toda parte.” - Ray Bradbury: The Burning Man
Deixe-me enfatizar isso: Eu... ODEIO... calor!
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Eu, quando preciso ir a padaria. Quando Chega a Escuridão (1987) |
Só não sou o gótico do meme "não dá pra ser gótico nesse calor" porque nunca fui tão sem noção a ponto de sair por aí de roupa preta num país tropical. A mim sempre bastou a sensibilidade gótica, que, de fato, não parece combinar muito bem com o sol escaldante, ou mesmo com noites sem vento que mais parecem estufas, purgando nossa vontade de viver direto das nossas entranhas.
Mal consigo pensar (talvez porque não estou pensando direito, de tão quente) em filmes e livros que, de algum modo, associem o gótico ao calor. Gótico, note bem, não estou falando de horror de modo geral. Tá cheio de vampiro por aí que vive no deserto, como os de Quando Chega a Escuridão, ou mesmo os Vampiros de John Carpenter. Por que? Não faço ideia, me parece meio contraproducente pra quem frita nos raios ultravioleta. Podem ter ficado doidos, o calor faz isso com as pessoas. Já viu aquela galera que fala que adora calor? Delírio! Muito sol na moleira, não raciocina mais direito. É bom ter cuidado com gente assim. Como acham que o Rutger Hauer ficou daquele jeito no A Morte Pede Carona?
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Eu, quando não dá mais para adiar as pendências do banco no centro da cidade. Hardware (1990) |
Onde é que eu estava mesmo? Tive que parar pra tomar uma água (e a gelada tinha acabado de novo!😱). Ah, sim! Que quando o horror se vale do calor como um elemento dramatúrgico e/ou atmosférico, tende a se
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Eu, nos (cada vez mais raros) momentos em que sinto um fiapo de esperança no futuro. O Solar de Dragonwyck (1946) |
Que tal Nêmesis do Fogo? O mais longo dos "casos psíquicos" de John Silence, o doutor extraordinário de Algernon Blackwood. É uma história curiosa, em que o primeiro "sintoma" de que há algo de errado em uma antiga mansão senhorial que Silence vai investigar, é a estranha onda de calor que parece pairar sobre o lugar. Um calor que não tem uma origem definida, e não parece relacionado ao clima, "um calor mental, uma incandescência de pensamento e desejo, uma espécie de calor febril do espírito" (Gente, é bem isso... será que fomos todos amaldiçoados?😶).
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Nêmesis do Fogo (1908) de Algernon Blackwood. John Silence demonstrando por A + B que calor é SEMPRE sinal de coisa ruim. |
É isso! Se há um gótico que tem tudo a ver com o calor, é o gótico imperial. Aquela penca de John Bulls desterrados, fritando sob o sol da Índia ou do Egito, e sofrendo na pele a providência das divindades dos povos oprimidos. Sim, eu sei que o ponto de vista dos autores não era bem esse, mas a gente têm toda a liberdade (e responsabilidade) de ler do nosso jeito.😜 O que no caso do Rudyard Kipling nem chega a fugir tanto. Nascido na Índia, e tendo lidado a vida toda com as contradições de ser o "cronista do império" independente de querer ou não, Kipling entendia (ao menos um pouco mais que a maioria de seus compatriotas) o ponto de vista do colonizado, e toda a sua obra "se realiza nessa volátil encruzilhada de perplexidade civilizatória e mal-estar sociocultural" (sim, estou me citando, lide com isso!).
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No Fim do Corredor (1880), na minha edição de Histórias Sobrenaturais de Rudyard Kipling. |
Todavia, a melhor de todas (quer dizer, sei lá se a melhor mesmo, é difícil colocar as coisas nesses termos numa obra tão vasta quanto a de Kipling, mas com certeza uma de minhas favoritas) ganhou uma bela de uma tradução pela (n.t.) Revista Nota do Tradutor, que você pode acessar livremente por aqui: No Final do Corredor é uma obra prima do gótico escaldante, se é que tal coisa existe. Uma história ambientada num longínquo entreposto no interior da Índia, onde quatro amigos, todos com direito à "vida, a liberdade e a busca da felicidade", costumam se encontrar para jogar uíste e tentar esquecer, ao menos por breves intervalos, o pesadelo de carregar a vontade do império por uma terra mormacenta que parece morrer de apoplexia. Um dia, o anfitrião revela que não consegue dormir. Nem mesmo sob o efeito da morfina! E que tem medo da coisa que o espreita em algum lugar entre o sono e a vigília. A tradutora, Denise Bottmann, nos diz que "embora usualmente classificado como conto de terror ou história de fantasmas, o conto é, na verdade, uma delicada exploração dos limites a que uma psique individual pode chegar, submetida a condições severas de isolamento e estranhamento", no que eu, com todo o respeito, me vejo na obrigação de atestar que este sutil estudo da fragilidade humana perante o incomensurável, é na verdade uma puta de uma história de horror! A qual tendo a retornar sempre que a temperatura sobe a ponto de me oprimir como algo além do físico, sufocando até abalar o nosso senso de nós mesmos, e a própria noção da realidade.
"Hummil virou nos calcanhares para encarar a clamorosa desolação de seu bangalô e a primeira coisa que viu na varanda foi a sua própria figura. Já tinha visto uma vez uma aparição semelhante, quando estava com estafa pelo excesso de trabalho e pela pressão do calor."Ainda estou longe de terminar Histórias Sobrenaturais de Rudyard Kipling. Não tenho pressa de esgotar uma coletânea assim. Normalmente leio um conto ao acaso sempre que o calor me leva a recorrer a ele, mas suponho que chegarei ao fim rapidinho do jeito que as coisas têm andado.😓 E aí, receio que tudo o que vai me restar pra (tentar) apaziguar o desespero crescente, será ler e reler O Homem em Chamas, de Ray Bradbury (como se já não fizesse isso com certa regularidade).
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Roberts Blossom, extraordinário na adaptação de O Homem em Chamas para o revival de 1985 da série Além da Imaginação. |
"E se o calor intenso, quero dizer, o calor realmente quente, quente de um mês como este, em uma semana como esta, em um dia como hoje, simplesmente produzisse um Homem Mau, feito de lama do rio assada. Que estava ali, enterrado na lama por quarenta e sete anos, como uma maldita larva, esperando vir à luz. E ele despertasse com uma sacudida e olhasse em volta, totalmente adulto, e saísse da lama quente para o mundo e dissesse: ‘Acho que vou comer um verão’.”Foi a voz dele, agora percebo, soando com o sotaque inconfundível do Roberts Blossom, que me fez sentar aqui pra tentar extrair qualquer arremedo de curadoria que ajude a nós, fãs do gótico, a (sobre)viver mais um dia nessa época que caras como o Carl Sagan, lá nos anos 80, tentaram tanto nos alertar que poderia ser evitada. Coitado do Sagan. Tão esperançoso. Sorte que ele morreu cedo, e não precisou ver o mundo empesteado de Homens em Chamas. Vagando por aí sob o sol abrasador, devorando o verão, o outono, a primavera, o inverno, insaciáveis, inesgotáveis, enquanto a Terra termina de fritar. Sim... não há dúvida de que existe maldade genética no mundo. Bradbury sabia, quando escreveu The Burning Man, lá em 1976, e J. D. Feigelson com certeza tinha uma boa noção quando o adaptou em 85. Adão, diz a lenda, veio do barro. O que mais poderia vir de um barro tão tostado e esturricado pelo sol?
E, por falar em mitologia cristã, eu tinha pensado em encerrar esse que, com certeza, é um dos piores textos da história do blog (sim, piores, só agora me dei conta de que devia ter falado de Carnivàle, mas quem consegue escrever algo decente nesse calor?) com uma bela de uma imagem do inferno, do jeitinho que os cristãos gostam. O fogo eterno onde as almas dos pecadores irão queimar por toda a eternidade. Mas quem disse que imagens assim são fáceis de achar na ficção de horror, seja ela gótica ou não, na literatura ou no cinema? Pode reparar, infernos memoráveis tendem a ser bem diferentes disso, tipo o loop existencial de Jigoku ou mesmo o inferno de gelo de Esta Noite Encarnarei no Seu Cadáver (tá, esse foi porque a grana do Mojica não dava pro fogo, só pra pipoca, mas, convenhamos, é genial!).
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O literalmente dantesco O Abismo Negro (1979). |
Mas chega! Nem sei mais o que estou dizendo! (É impressão minha, ou tá ficando mais quente?🥵) Deixa eu fechar logo essa zona, apelando para a melhor cena de inferno quente que já vi retratada no audiovisual. Só que não é o "inferno" propriamente dito, os gregos não acreditavam nessas coisas. Para eles, bom ou mal, certo ou errado, justo ou injusto, todo mundo ia parar no mesmo lugar (o que faz muito mais sentido, se quer saber😜): Hades, na deliciosamente espirituosa adaptação televisiva de A Odisséia do Andrei Konchalovsky, de 1997. Meu... vou te contar: remete exatamente à sensação térmica aqui em casa, enquanto escrevo essa bagaça.
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