sexta-feira, 7 de março de 2025

Divagações Pseudo-Críticas de um Cérebro Seriamente Comprometido pelo Calor


"Num dia como hoje, o inferno todo está solto dentro de sua cabeça. Lúcifer nasceu em um dia assim, em uma desolação como esta. Com apenas fogo e chamas e fumaça em toda parte.” - Ray Bradbury: The Burning Man
Eu odeio calor.

Deixe-me enfatizar isso: Eu... ODEIO... calor!

Eu, quando preciso ir a padaria.
Quando Chega a Escuridão (1987)
Poucas coisas me causam mais desgosto na vida do que saber que o mundo vai acabar em aquecimento global, e não por uma nova era glacial.

Só não sou o gótico do meme "não dá pra ser gótico nesse calor" porque nunca fui tão sem noção a ponto de sair por aí de roupa preta num país tropical. A mim sempre bastou a sensibilidade gótica, que, de fato, não parece combinar muito bem com o sol escaldante, ou mesmo com noites sem vento que mais parecem estufas, purgando nossa vontade de viver direto das nossas entranhas.

Mal consigo pensar (talvez porque não estou pensando direito, de tão quente) em filmes e livros que, de algum modo, associem o gótico ao calor. Gótico, note bem, não estou falando de horror de modo geral. Tá cheio de vampiro por aí que vive no deserto, como os de Quando Chega a Escuridão, ou mesmo os Vampiros de John Carpenter. Por que? Não faço ideia, me parece meio contraproducente pra quem frita nos raios ultravioleta. Podem ter ficado doidos, o calor faz isso com as pessoas. Já viu aquela galera que fala que adora calor? Delírio! Muito sol na moleira, não raciocina mais direito. É bom ter cuidado com gente assim. Como acham que o Rutger Hauer ficou daquele jeito no A Morte Pede Carona?

Eu, quando não dá mais para adiar as
pendências do banco no centro da cidade.
Hardware (1990)
Mas estou divagando (limpar o suor que pinga em cima do teclado me distrai). Foco! Não, o gótico é um negócio mais facilmente associável aos ventos uivantes, às tempestades torrenciais, trovões, Vincent Price sob o brilho dos relâmpagos, observando seus domínios pelas janelas do Solar de Dragonwyck.🤗 Esse tipo de coisa. Clichê, é claro, mas até aí, caipiras canibais correndo debaixo do sol com serras elétricas também é um clichê e ninguém reclama. A realidade é um clichê. Será que estão pagando alguma coisa pro Richard Stanley por copiar a sua estética (e conceitos) de Hardware para o mundo real? Estou olhando pela janela agora mesmo e a única coisa que me parece faltar é o filtro alaranjado. Não, eu não moro na capital, lá já tem, né?

Onde é que eu estava mesmo? Tive que parar pra tomar uma água (e a gelada tinha acabado de novo!😱). Ah, sim! Que quando o horror se vale do calor como um elemento dramatúrgico e/ou atmosférico, tende a se derreter deixar percolar por outros gêneros, como a ficção científica. Seja pra nos alertar do nosso provável fim (como se adiantasse alguma coisa), em O Dia em Que a Terra se Incendiou, ou para caracterizar ameaças alienígenas meio diferentonas, tipo O Demônio de Fogo ou mesmo, ora vejam, O Predador ("Apenas nos anos mais quentes isso acontece, e este foi um ano muito, muito quente", nos conta a guerrilheira cativa do Schwarzenegger, meio que me fazendo esperar por uma invasão em larga escala a qualquer momento🤔). Se há um elemento sobrenatural envolvido, como os já citados vampiros do deserto, pode crer que a coisa vai degringolar puxar mais para a aventura macabra do que para a melancolia mórbida. Ou será que alguém por aí chora quando o Kiefer Sutherland é empalado em Os Garotos Perdidos? (Quer dizer, eu choro, mas isso não vem ao caso.)

Eu, nos (cada vez mais raros) momentos em
que sinto um fiapo de esperança no futuro.
O Solar de Dragonwyck (1946)
Há exceções? Claro! Exceções que confirmam a regra. Minha favorita é The Velvet Vampire, de 1971. Talvez o gótico mais solar já produzido para os cinemas (ao menos de acordo com a minha memória já seriamente comprometida pelo calor). Mas já falei aqui sobre essa preciosidade da Stephanie Rothman. Hoje estou mais afim de falar sobre literatura, onde me parece que é ainda mais raro topar com góticos em altas temperaturas. (E também porque ler é algo que eu posso fazer ao ar livre, sentado no jardim com o meu tablet, sob a sombra das árvores, tentando aproveitar ao máximo até a brisa mais tênue, já que parece que é só isso que teremos.) E o que ler, então, que combine com todo esse calor?

Que tal Nêmesis do Fogo? O mais longo dos "casos psíquicos" de John Silence, o doutor extraordinário de Algernon Blackwood. É uma história curiosa, em que o primeiro "sintoma" de que há algo de errado em uma antiga mansão senhorial que Silence vai investigar, é a estranha onda de calor que parece pairar sobre o lugar. Um calor que não tem uma origem definida, e não parece relacionado ao clima, "um calor mental, uma incandescência de pensamento e desejo, uma espécie de calor febril do espírito" (Gente, é bem isso... será que fomos todos amaldiçoados?😶).

Nêmesis do Fogo (1908) de Algernon Blackwood.
John Silence demonstrando por A + B
que calor é SEMPRE sinal de coisa ruim.
Claro que não fica só nisso, esse talvez seja o caso com o maior número de reviravoltas em toda a breve trajetória literária do bom doutor, e chega um momento em que o lance da temperatura já nem é mais um dos grandes pontos do enredo. Mas é o bastante pra nos chamar atenção para essa forma inusitada de construir uma atmosfera de medo e inquietação pelo desconforto que os personagens sentem com um calor que "não é natural", e que, obviamente, sendo ingleses, nenhum deles estava acostumado a sentir. Quer dizer, exceto pelo velho coronel, veterano das campanhas na Índia, que sabe muito bem como é o calor opressivo das colônias. E ninguém vai se surpreender quando a solução do mistério tiver tudo a ver com a sanha imperialista britânica, tomando para si os artefatos de culturas que mal compreende, e desencadeando forças com as quais não terá condições de lidar.

É isso! Se há um gótico que tem tudo a ver com o calor, é o gótico imperial. Aquela penca de John Bulls desterrados, fritando sob o sol da Índia ou do Egito, e sofrendo na pele a providência das divindades dos povos oprimidos. Sim, eu sei que o ponto de vista dos autores não era bem esse, mas a gente têm toda a liberdade (e responsabilidade) de ler do nosso jeito.😜 O que no caso do Rudyard Kipling nem chega a fugir tanto. Nascido na Índia, e tendo lidado a vida toda com as contradições de ser o "cronista do império" independente de querer ou não, Kipling entendia (ao menos um pouco mais que a maioria de seus compatriotas) o ponto de vista do colonizado, e toda a sua obra "se realiza nessa volátil encruzilhada de perplexidade civilizatória e mal-estar sociocultural" (sim, estou me citando, lide com isso!).

No Fim do Corredor (1880), na minha edição de
Histórias Sobrenaturais de Rudyard Kipling.
É pena que a maioria das histórias onde Kipling traduz essas experiências pelo prisma do horror não está disponível na rede. Elas enchem um livro, que eu não hesitaria em recomendar: Histórias Sobrenaturais de Rudyard Kipling, pela Bertrand Brasil (compre se tiver a chance!), mas digitalizado mesmo você só vai achar O Riquixá FantasmaA Marca da BestaMinha História Verdadeira Sobre Fantasmas, e uma ou outra coisa a mais.

Todavia, a melhor de todas (quer dizer, sei lá se a melhor mesmo, é difícil colocar as coisas nesses termos numa obra tão vasta quanto a de Kipling, mas com certeza uma de minhas favoritas) ganhou uma bela de uma tradução pela (n.t.) Revista Nota do Tradutor, que você pode acessar livremente por aqui: No Final do Corredor é uma obra prima do gótico escaldante, se é que tal coisa existe. Uma história ambientada num longínquo entreposto no interior da Índia, onde quatro amigos, todos com direito à "vida, a liberdade e a busca da felicidade", costumam se encontrar para jogar uíste e tentar esquecer, ao menos por breves intervalos, o pesadelo de carregar a vontade do império por uma terra mormacenta que parece morrer de apoplexia. Um dia, o anfitrião revela que não consegue dormir. Nem mesmo sob o efeito da morfina! E que tem medo da coisa que o espreita em algum lugar entre o sono e a vigília. A tradutora, Denise Bottmann, nos diz que "embora usualmente classificado como conto de terror ou história de fantasmas, o conto é, na verdade, uma delicada exploração dos limites a que uma psique individual pode chegar, submetida a condições severas de isolamento e estranhamento", no que eu, com todo o respeito, me vejo na obrigação de atestar que este sutil estudo da fragilidade humana perante o incomensurável, é na verdade uma puta de uma história de horror! A qual tendo a retornar sempre que a temperatura sobe a ponto de me oprimir como algo além do físico, sufocando até abalar o nosso senso de nós mesmos, e a própria noção da realidade.
"Hummil virou nos calcanhares para encarar a clamorosa desolação de seu bangalô e a primeira coisa que viu na varanda foi a sua própria figura. Já tinha visto uma vez uma aparição semelhante, quando estava com estafa pelo excesso de trabalho e pela pressão do calor."
Ainda estou longe de terminar Histórias Sobrenaturais de Rudyard Kipling. Não tenho pressa de esgotar uma coletânea assim. Normalmente leio um conto ao acaso sempre que o calor me leva a recorrer a ele, mas suponho que chegarei ao fim rapidinho do jeito que as coisas têm andado.😓 E aí, receio que tudo o que vai me restar pra (tentar) apaziguar o desespero crescente, será ler e reler O Homem em Chamas, de Ray Bradbury (como se já não fizesse isso com certa regularidade).

Roberts Blossom, extraordinário na
adaptação de O Homem em Chamas
para o revival de 1985 da série
Além da Imaginação.
Conhece essa? Percebi que é um dos contos menos conhecidos do Bradbury, o que realmente me espanta. No Brasil, que eu saiba, só saiu no volume A Cidade Inteira Dorme e Outros Contos, da Biblioteca Azul, mas suponho que muitos velhinhos por aí já o conhecem por conta da fidelíssima adaptação feita para o seriado The Twilight Zone, em 1985. Sim, me refiro ao revival dos anos 80, não ao Além da Imaginação clássico de 1959. Lembro-me de assisti-lo na casa da minha avó, em Cândido Motta, quando a Globo o exibiu pela primeira vez, provavelmente em 85 mesmo. E seu impacto sobre mim foi indelével! Eu não entendi nada! Continuo sem entender, e o mesmo vale para o conto. E como tantas coisas incompreensíveis que nos tomam de assalto na infância, ele tem feito parte da minha vida desde então. Entranhado até os ossos, me atravessando com uma ressonância avassaladora demais para ser assimilada pela mera racionalidade. O Homem em Chamas... Tenho certeza de que ele está lá fora agora. Em algum lugar...
"E se o calor intenso, quero dizer, o calor realmente quente, quente de um mês como este, em uma semana como esta, em um dia como hoje, simplesmente produzisse um Homem Mau, feito de lama do rio assada. Que estava ali, enterrado na lama por quarenta e sete anos, como uma maldita larva, esperando vir à luz. E ele despertasse com uma sacudida e olhasse em volta, totalmente adulto, e saísse da lama quente para o mundo e dissesse: ‘Acho que vou comer um verão’.”
Foi a voz dele, agora percebo, soando com o sotaque inconfundível do Roberts Blossom, que me fez sentar aqui pra tentar extrair qualquer arremedo de curadoria que ajude a nós, fãs do gótico, a (sobre)viver mais um dia nessa época que caras como o Carl Sagan, lá nos anos 80, tentaram tanto nos alertar que poderia ser evitada. Coitado do Sagan. Tão esperançoso. Sorte que ele morreu cedo, e não precisou ver o mundo empesteado de Homens em Chamas. Vagando por aí sob o sol abrasador, devorando o verão, o outono, a primavera, o inverno, insaciáveis, inesgotáveis, enquanto a Terra termina de fritar. Sim... não há dúvida de que existe maldade genética no mundo. Bradbury sabia, quando escreveu The Burning Man, lá em 1976, e J. D. Feigelson com certeza tinha uma boa noção quando o adaptou em 85. Adão, diz a lenda, veio do barro. O que mais poderia vir de um barro tão tostado e esturricado pelo sol?


E, por falar em mitologia cristã, eu tinha pensado em encerrar esse que, com certeza, é um dos piores textos da história do blog (sim, piores, só agora me dei conta de que devia ter falado de Carnivàle, mas quem consegue escrever algo decente nesse calor?) com uma bela de uma imagem do inferno, do jeitinho que os cristãos gostam. O fogo eterno onde as almas dos pecadores irão queimar por toda a eternidade. Mas quem disse que imagens assim são fáceis de achar na ficção de horror, seja ela gótica ou não, na literatura ou no cinema? Pode reparar, infernos memoráveis tendem a ser bem diferentes disso, tipo o loop existencial de Jigoku ou mesmo o inferno de gelo de Esta Noite Encarnarei no Seu Cadáver (tá, esse foi porque a grana do Mojica não dava pro fogo, só pra pipoca, mas, convenhamos, é genial!).

O literalmente dantesco
O Abismo Negro (1979).
O mais próximo que consegui pensar de um inferno quente, por incrível que pareça, é o desfecho de O Abismo Negro, de 1979. Mas além de fugir da proposta (proposta?), eu já escrevi sobre o Ciclo Dark Disney em outra parte do blog. Curioso, não é? Como uma imagem tão presente no imaginário coletivo tende a aparecer mais como sátira (incluindo um monte de desenhos animados) do que como algo a ser levado a sério. Será que se tornou óbvia demais, ou, no fundo, a gente sempre soube que o inferno de fogo acabaria sendo, eventualmente, aqui mesmo? Pode ser que a arte, e mesmo o horror, tenham tentado dar vazão a uma esperança inconsciente, e, na real, bem ingênua, de que as coisas possam vir a melhorar no pós-vida, nem que seja só um pouquinho (um inferno gelado... ah, Mojica, seu safado... eu toparia!😍).

Mas chega! Nem sei mais o que estou dizendo! (É impressão minha, ou tá ficando mais quente?🥵) Deixa eu fechar logo essa zona, apelando para a melhor cena de inferno quente que já vi retratada no audiovisual. Só que não é o "inferno" propriamente dito, os gregos não acreditavam nessas coisas. Para eles, bom ou mal, certo ou errado, justo ou injusto, todo mundo ia parar no mesmo lugar (o que faz muito mais sentido, se quer saber😜): Hades, na deliciosamente espirituosa adaptação televisiva de A Odisséia do Andrei Konchalovsky, de 1997. Meu... vou te contar: remete exatamente à sensação térmica aqui em casa, enquanto escrevo essa bagaça.

E fica aí, pra vocês decidirem, se eu estou mais pra Armand Assante ou Christopher Lee.😅


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