sexta-feira, 21 de março de 2025

Quando o Bom e Velho Tio Martin me apresentou a Lovecraft...


Havia uma banca de jornal no caminho da minha casa até a escola...

(Como? O que é uma banca de jornal? Era tipo um quiosque que vendia sites de notícias impressos em papel. Isso, papel. E sites de variedades, num papel um pouco melhor, que chamávamos de revistas, de tudo quanto é tipo de assunto. Incluindo banalidades e fofocas, como as redes sociais de hoje em dia, só que escritas por profissionais que ganhavam pra isso, e não pelos próprios clientes trabalhando de graça. Mas o que realmente interessava nas bancas de jornais era que tinha gibis! Histórias em Quadrinhos. Sim, mangás também, mangás são quadrinhos! Mas onde é que eu estava mesmo? Ah sim...)

O primeiro Bonelli a gente nunca esquece.
Os Grandes Enigmas de Martin Mystère,
Detetive do Impossível
, n.5, Junho de 1987.
Havia uma banca de jornal no caminho da minha casa até a escola... onde eu dava as minhas paradinhas estratégicas, na ida e na volta, para conferir os gibis que tinham saído no dia. Dependendo do que me chamasse a atenção na ida, eu compraria na volta. E foi num dia desses, como outro qualquer, que eu dei de cara com essa capa aí ao lado, me encarando de algum ponto da prateleira. Os Grandes Enigmas de Martin Mystère, Detetive do Impossível. Esse era o título. Edição de número 5, A Casa nos Confins do Mundo. Bicho... foi amor a primeira vista.

Eu já tinha ouvido falar, na verdade. Por incrível que pareça, a Editora Globo havia investido pesado na divulgação. Juro que vi um comercial na TV, em que um "repórter" anunciava a chegada de um renomado arqueólogo e explorador ao Brasil, mostrando a capa da primeira edição sendo disputada nas bancas. Cansei de procurar esse troço no YouTube pra provar que eu não tinha sonhado, mas pelo visto essa pérola publicitária acabou se perdendo no tempo. Então eu já sabia que havia um tal de Martin Mystère, mas não imaginava que a revista teria uma pegada de horror. Era um formatinho de 100 páginas em preto e branco, o que, na minha lógica, significava uma ótima relação de custo/benefício (saudade daqueles tempos, em que você podia comprar um gibi de 100 páginas pelo valor que tinha economizado no lanche do dia). Levei o Sr. Mystère para casa e passei aquela madrugada maldita devorando as 100 páginas com avidez, sem imaginar que estaria dando os meus primeiros passos no universo da weird fiction e do cosmic horror.

A Casa nos Confins do Mundo começa com o Prof. Mystère sendo contratado pelo Detetive Travis para prestar uma consultoria num caso deveras insólito (o tipo da expressão típica da série), envolvendo um assaltante porto-riquenho preso enquanto surtava no Grand Central Terminal de Nova York. Acontece que o tal do sujeito constava como tendo assassinado uma pessoa em Providence, Rhode Island, no exato instante em que "surgira", do nada, bem no meio do terminal. Teria sido "teletransportado" de Providence até Nova York? Intrigado, lá vai o professor, na companhia de seu assistente, o homem de Neanderthal chamado Java (sim, era um gibi bem maluco), investigar uma casa de aspecto macabro, de onde, supostamente, o camarada teria se "desmaterializado". E não demora pra que Prof. Mystère fique sabendo que o lugar já tinha sido visitado por um escritor de certo renome, que nascera justamente ali, em Providence, em 1890, um tal de H. P. Lovecraft.

Quem não conhece Lovecraft? Na época, pelo visto, quase ninguém! Só o erudito Prof. Mystère.

Pelo que consta no expediente da revista (que ainda está aqui, do meu lado😊), era o ano de 1987. Curioso como o tempo se embola na cabeça da gente, ainda mais levando em conta a demora com que os filmes e quadrinhos chegavam ao Brasil naqueles tempos pré-internet. Em 1987 já havia Re-Animator (1985) e até Do Além (1986), mas suponho que não haviam sido lançados por aqui ainda, ao menos não em larga escala, ou eu os teria visto (como de fato vi, nas locadoras de VHS, em alguma outra ocasião). O fato é que, naquele momento, enquanto lia a intrigante aventura do Prof. Mystère, recém saída da banca, eu não tinha a menor ideia de quem era H.P. Lovecraft. Era a primeira vez que eu via esse nome. Já tinha lido quase tudo do Poe (que sempre foi ostensivamente publicado no Brasil), um monte de Stephen King (a gente tem que começar em algum lugar) e uma infinidade de coletâneas de autores diversos, de Conan Doyle a Maupassant, de Hoffmann a Le Fanu...

E nunca tinha ouvido falar de Lovecraft.

Hoje eu sei que Lovecraft demorou mesmo um bom tempo até se tornar essa onipresença que é hoje. A ponto das primeiras adaptações cinematográficas de suas obras tentarem emular a estética e a atmosfera do Ciclo Poe do Roger Corman (mais detalhes sobre isso aqui😉), mas nunca deixa de me espantar o quão oportuna foi a chance de conhecê-lo dessa forma tão indireta e inusitada. Alfredo Castelli, o lendário criador do Prof. Mystére, nos dá uma verdadeira aula sobre o escritor americano no decorrer do quadrinho, algo que eu logo entenderia ser típico das aventuras eruditas do Detetive do Impossível, costurando fatos reais sobre a vida do autor, com o histórico fictício da misteriosa mansão que serve de palco pra história. Nada tão aprofundado, e, na real, até meio inacurado (é bom que se diga), mas suficiente pra deixar aquele nerdzinho de olhos assustados que eu era(?) completamente enfeitiçado.

Minha primeira "aula" sobre H.P. Lovecraft e os Mitos de Cthulhu. Cortesia de Alfredo Castelli.🤗

Como não curiosar por um autor que "morreu quase louco, justo como os protagonistas de suas histórias terrificantes"? Naquela época, não se falava no Lovecraft "racista e xenófobo", falava-se do Lovecraft "gênio louco". Hoje sabemos que não era nem tanto mar, nem tanto terra. Lovecraft morreu de câncer, e nunca sequer foi internado, embora tivesse sim medo de enlouquecer devido ao histórico da família. E nem era particularmente mais racista que boa parte de seus conterrâneos, chegando até a rever algumas de suas convicções nos últimos anos de vida, depois de passar por um período traumático, porém esclarecedor, morando em Nova York com a esposa (algo fartamente documentado em sua vasta correspondência). Mas entre o fato e a lenda, publica-se a lenda que cada época acha que vai vender melhor, e a mítica do "autor insano" sempre foi muito querida até do próprio Lovecraft, que a usou até cansar com seu "árabe louco", "autor" do Necronomicon, Abdul Alhazred, que, como sabem, era um pseudônimo que ele mesmo usava para se corresponder com a nerdaiada os outros escritores. Antes de mais nada, o tio Love era um puta de um geek, para o bem e para o mal.

Alfredo Castelli e A.M. Ricci, se unindo ao seleto
grupo de plagiadores de Kill Baby Kill (1966) do
Mario Bava, que inclui também Federico Fellini, em
Histórias Extraordinárias (1968), e David Lynch,
no episódio final de Twin Peaks (1991).
Mas, na época, eu só sabia o que o Sr. Castelli me contava. E foi o que me bastou. Era o meu primeiro contato com piras como "perspectivas impossíveis" (o interior da casa era um legítimo pesadelo surrealista, com direito até a uma discreta citação, pra quem manja, do Kill, Baby, Kill, do Mario Bava), geometria "não-euclidiana", sólidos sem dimensões, os Mitos de Cthulhu, deuses do espaço, livros e pinturas horrendos demais para serem vistos, enfim, a zona toda (curiosamente Castelli deixou os tentáculos de fora... digo, isso soou estranho...😶 quero dizer que não tem tentáculo na história, cada um com seus fetiches😅). O bastante pra que, no mês seguinte, enquanto eu esperava pelo final da história na próxima edição (sim, é claro que continuava na próxima edição, como não, né?) eu vasculhasse obsessivamente a biblioteca da minha cidade, na esperança de achar qualquer coisa do Lovecraft, nem que fosse um conto ou outro numa coletânea... em vão. Ah, os bons tempos, quando não havia internet e achar qualquer coisa era uma luta... saudade (SQN).

Ao menos não me parece que tenha voltado a ter acesso a Lovecraft tão cedo. A ordem dos eventos vai se misturando na memória, mas sei que, em algum momento, aprendi um pouco mais sobre o autor no Dança Macabra do Stephen King, e, eventualmente, me caiu nas mãos (acho que até pela biblioteca mesmo) os dois volumes que a Francisco Alves publicou em sua célebre coleção Mestres do Horror e da Fantasia (curiosamente, em 1982, o mesmo ano em que La casa ai confini del mondo saiu originalmente na Itália). Não poderia ter tido melhor iniciação, pois Um Sussurro nas Trevas e A Casa das Bruxas traziam justamente algumas das obras mais significativas do autor, como A Cor que Caiu do Céu, O Chamado de Cthulhu, Vento Frio, Nas Montanhas da Loucura, a própria Um Sussurro nas Trevas e, claro, A Casa Abandonada, que sem dúvida foi uma das inspirações de Castelli e é, até hoje, uma das minhas histórias mais queridas.

"Diabos do Inferno, Pickman, como pôde
sozinho imaginar semelhantes horrores?
"
Conseguir mais material é que foi o problema. Acho que só tive chance de ler tudo que queria do velho Lovecraft com o advento da internet, e ainda assim não de imediato. Como sempre, a tendência das editoras que assumiram após a Francisco Alves foi ficar reeditando ad nauseam as mesmas histórias. Contos como Os Ratos nas Paredes e O Modelo de Pickman simplesmente NUNCA apareciam em coletânea alguma, o que era particularmente chato no caso dessa última, já que Pickman (e as suas pinturas) eram uma presença marcante em A Casa nos Confins do Mundo. Pra ter uma ideia, acho que só li O Modelo de Pickman nos anos 2000, quando a Iluminuras lançou a coleção mais diversificada e abrangente da obra do autor, até aquele momento.

Hoje acho que a maior dificuldade seria escolher qual tradução você prefere. Já perdi a conta das editoras que lançaram a obra completa (ou quase completa) de H. P. Lovecraft em português, e as histórias que tanto fizeram a minha cabeça nos volumes da Francisco Alves são praticamente onipresentes hoje em dia. Você teria que se esforçar pra não ter, no mínimo três traduções diferentes de A Cor Que Caiu do Céu na sua estante, nas mais variadas coletâneas. Quem diria, não? Que aquele nome meio bizarro ("Love... Craft?") que só o Prof. Mystère parecia conhecer nos anos 80 (exceto pelo seu próprio personagem, Pickman!), se tornaria um dos pilares da ficção de horror mundial, a ponto do termo lovecraftiano sequer poder ser considerado um adjetivo, mas um subgênero, e você ser capaz de reconhecer elementos de suas histórias em praticamente toda a cultura pop. De quadrinhos de super herói até pantufas do Cthulhu.

Lovecraft na coleção de Mestres do Horror e da Fantasia, da Editora Francisco Alves.
Um Sussurro nas Trevas, de 1982, A Casa das Bruxas, de 1983, e, finalmente, A Tumba e Outras Histórias, que viria em 1991, só pra acabar com a estética da coleção.😂

Já o Prof. Mystère... bom, pode-se dizer que hoje é ele que é reconhecido apenas por um seleto (e irrisório) grupo de connoisseurs dos fumetti da Sergio Bonelli Editore, aos quais, evidentemente, me incluo.😁 Ainda que deva admitir que foi-se o tempo que eu aguardava ansiosamente por suas aventuras. Na época, tornou-se um de meus quadrinhos favoritos e foi tremendamente frustrante quando a Editora Globo decidiu cancelar a revista ao final do primeiro ano. Mas conforme a série voltava, de tempos em tempos, por outras editoras (e ainda mais levando em conta a estranha insistência da Record e da Mythos em publicar as histórias fora de ordem, saltando aleatoriamente por diferentes fases e autores na Itália) foi ficando cada vez mais claro que tinha rolado uma mudança de caráter no decorrer dos anos. Aquela sobriedade que dava peso e credibilidade aos temas tratados foi sendo gradualmente substituída por um tom mais cartunesco, às vezes até debochado, que nunca consegui curtir de verdade. Até acho que deva ser mais sensato, politicamente falando, não levar tão a sério coisas como arqueologia misteriosa, criptozoologia, alienígenas, teorias da conspiração e o continente perdido de Atlântida nos tempos que vivemos, mas não me parece que Castelli e seus colaboradores tenham conseguido acertar no tom no pastiche, como o faziam quando a negócio era pra valer, e o resultado, muitas vezes, acaba sendo só... bobo.

Todavia, ainda acho aquelas primeiras 13 edições alguns dos melhores quadrinhos que já li na vida, naquele formato clássico de seis quadros por página, com foco em enredo. Histórias como A Vingança de Rá, O Triângulo das Bermudas, O Homem que Descobriu a Europa e A Caveira do Destino me vieram no momento certo, quando já sentia a necessidade de fazer um detox de Marvel e DC e "utilizar as minhas energias para alargar os meus horizontes, ao invés de esforçar-me para restringi-los em fronteiras tranquilas e bem pré-estabelecidas", como o bom e velho tio Martin sempre dizia. Foi por ele que cheguei em Dylan Dog, Mágico Vento, Ken Parker e outras preciosidades não só da Bonelli, mas da banda desenhada de modo geral, algo que, como todo mundo sabe, é um caminho sem volta.

Como Lovecraft.😉

O desenho de A.M. Ricci tem pouca correspondência com o Lovecraft real, tanto que foi até redesenhado em reimpressões posteriores. Mas claro que, pra mim, foi a imagem que ficou, ainda mais com a extraordinária coincidência de ter lido quase na mesma época a descrição de Stephen King em Dança Macabra:

"Seria bom o leitor lembrar que é na sua sombra, tão longa e delgada, e em seus olhos, tão negros e puritanos, que se apóia a quase totalidade da ficção de terror que surgiu desde então. São dos seus olhos que me lembro melhor da primeira fotografia dele que vi... olhos como aqueles dos velhos retratos que ainda hoje estão pendurados em muitas casas da Nova Inglaterra, olhos negros que parecem olhar para dentro, ao mesmo tempo que para fora.
Olhos que parecem segui-lo."

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