sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Por entre as fendas das Vampyres...


Há duas formas de se encarar um filme como Vampyres (1974). Uma é como aquilo que ele de fato é: um exploitation britânico, dirigido por um diretor espanhol, cheio de nudez, sangue, e violência, e uma quantidade generosa de cenas lésbicas e picantes feitas para um olhar, acima de tudo, masculino. Tudo isso ele cumpre. E cumpre bem, com finesse e categoria. E você pode muito bem parar por aí, se for só o que te interessa. Nada contra. Mas há mais. Ou talvez, melhor dizendo, pode haver mais. Dependendo do olhar, dependendo da leitura. Eu diria que ele se permite a isso. Vampyres é um filme curiosamente cheio de fendas. Pleno de lacunas, pontas soltas e perguntas sem resposta. Pode parecer direto, e talvez até seja. Dá pra ligar (a maior parte) dos pontos com (certa) facilidade. Mas quando você começa a prestar atenção nos detalhes que não encaixam, outra forma de encarar começa a emergir. E o filme de José Ramón Larraz se torna algo um tanto mais estranho e fascinante do que se imaginaria a princípio.

Anulka DziubinskaMarianne Morris,
se comendo lindamente em cima
de um pobre diabo exangue.
Comecemos do começo: do que se trata a história? A maioria dos resenhistas e catálogos de vídeo não hesitará em reduzir o enredo nos seguintes termos (ah, sim, haverá ☢️SPOILERS☢️, será inevitável): Duas amantes são assassinadas por um marido ciumento e, de alguma forma, se tornam vampiras que atraem os viajantes incautos até a sua antiga mansão abandonada, para devora-los vivos com requintes de crueldade, enquanto satisfazem suas libidos, ainda bem vivas e sedentas, nos braços uma da outra. Enquanto isso, acampada com seu marido num trailer nos terrenos da mansão, uma mulher começa a desconfiar das constantes idas e vindas das duas, sempre chegando ao anoitecer, cada vez com um homem diferente, e indo embora sozinhas ao amanhecer. Não demora para que o casal tenha contato com um desses homens que, por alguma razão, tem sido mantido com vida para sustentar as criaturas das trevas por mais de uma noite, e, desse encontro fortuito, toda a situação irá desembocar numa espécie de tragédia final.

Não há nada de errado nesse resumo, tudo isso está no filme, e, como já foi dito, funciona naquele nível básico de um cinema de horror de alta carga erótica, muita pele nua e sangue. Dá até pra fazer algumas interpretações mais primárias como, digamos, essa seria uma história sobre o pavor masculino diante de uma sexualidade feminina predatória e aberrante, que já não precisa mais de homens para se satisfazer, e esperam deles apenas que lhes sirvam de "bolsas de sustento". Típica demonização da lesbianidade, que não seria estranha à boa parte do cinema e literatura voltados ao velho tropos da vampira lésbica, datado desde Carmilla. Tudo muito simples e direto. Já dá pra cancelar e passar para o próximo título.

Quem precisa de caninos afiados quando se tem
volúpia, trabalho de equipe e fúria bacante?

Ou poderíamos virar essa chave ao contrário? Afinal não são elas que foram assassinadas em primeiro lugar? Então poderia muito bem ser sobre a vingança da lesbianidade contra a opressão masculina. Até porque, nem dá pra ter mesmo muita simpatia por aquele bando de macho intercambiável que elas vão atraindo pra casa todas as noites. O destaque é delas, e todo delas: de Fran e Mirian. Enigmáticas, exóticas e deslumbrantes. E que imagem poderia ser mais emblemática do que as duas se comendo lindamente numa cama empapada de sangue, enquanto um pobre diabo exangue ao lado delas mal consegue se mexer, quanto mais "entrar no meio" das duas? Poderia haver deboche mais perfeito para a mais manjada das fantasias masculinas? Lacrou! Tudo de bom! Segue pro próximo.

Enigmáticas, exóticas e deslumbrantes.
E cafonas, claro. Como não?
Tem coisa mais linda?🥰
Mas, como eu disse, há brechas pra mais do que isso. Pra começo de conversa, me chama a atenção que na cena inicial do assassinato, antes mesmo dos créditos de abertura, nós nunca vemos o assassino. As duas estão lá na cama, nuas, aos beijos e abraços (e, não sejamos ingênuos, é claro que essa cena está lá, antes de mais nada, para garantir a atenção masculina nos primeiros minutos de projeção), quando um vulto entra no quarto. Uma sombra que só se pode distinguir como alguém que usa um chapéu enorme. O vulto atira nelas e as abandona ali, cobertas de sangue. Os créditos entram... e nunca mais ouvimos falar desse vulto outra vez. Quem era? O marido de uma delas, como diz em 90% das resenhas? É claro que essa seria a conclusão lógica, mas, olha só que interessante: o filme não nos diz isso. Desde o início nós já estamos preenchendo as lacunas, sem nem perceber. O que sabemos, de fato, sobre Fran e Mirian? Quem eram elas antes disso tudo acontecer? As donas da mansão? As criadas? A dona e uma criada? E qual seria qual? Invasoras? E pra que esconder a identidade do assassino? (Ou assassina?) Pra não ter que contratar mais uma pessoa só pra fazer uma ponta? É possível!😅 Mas também curioso. De cara, cria-se um ponto cego, o primeiro de muitos, por onde a audiência já pode começar a (se deixar) perder.

E daí a coisa não pára. Nosso "protagonista" (nem fodendo!😝) chega ao hotel para fazer o check-in e é prontamente reconhecido pelo dono: "Esse é um cliente antigo, faz tempo que não o vemos por aqui". O tio toma uma bela fulminada com os olhos, "acho que o senhor se enganou", e saca que cometeu uma gafe: "Perdão, cavalheiro, devo tê-lo confundido com outra pessoa". Quem é esse tal de "Ted" e o que estaria fazendo por ali, aparentemente "de volta" e na surdina? Sei lá! Mas é curioso... Empresta umas camadas a mais de especulação ao seu encontro com Fran na estrada, logo em seguida. "Você me lembra muito alguém que conheci há muito tempo atrás", diz ele assim que ela sobe no carro. Ela não responde, só o observa, com o seu olhar blasé.

"Por este sinal eu te reconheço.Sally Faulkner, começando a aprender
que cumplicidade feminina nem sempre significa uma rede de apoio.

Há algo de divertido na facilidade com que as duas atraem os homens até a mansão (que, à propósito, é a boa e velha Oakley Court de Rocky Horror Picture Show e mais da metade dos filmes de terror gótico britânicos dos anos 60 e 70). Basta esperar um tempinho na estrada, seja as duas juntas, ou uma por vez, e os pamonhas caem na cilada como patinhos, sempre com aquele ar de "ah, me dei bem" estampado no rosto e na atitude. Independente de qual seja a sua disposição para com o filme, convenhamos que é sempre refrescante ver homens sendo retratados como as vítimas "fáceis", pra variar. Mas acho que divaguei...

O VHS brasileiro de "As Filhas de Drácula"
(Drácula quem, cara pálida?) com uma das
suas icônicas corridinhas pelo cemitério.
Retomando, evidente que nunca saberemos quem o tal "Ted" realmente é, nem se de fato conhecia Fran de outros carnavais. Nem gastaremos muito tempo matutando sobre isso, porque perguntas ainda mais intrigantes não tardarão a surgir. Harriet, a mulher acampada no tal trailer na propriedade, simplesmente não consegue tirar Fran e Miriam da cabeça desde que as viu pedindo carona na estrada pela primeira vez. "Eram duas", ela diz ao marido, que só vira Fran parada no meio fio. "Uma delas estava escondida atrás das arvores. Por que ela se esconde?" De fato, por que? Por que Miriam sempre parece andar um passo atrás de Fran quando as duas marcham pela floresta, daquele jeito estranhamente ostensivo, indo e voltando do cemitério? Ao mesmo tempo, é sempre ela que ralha, comanda e chama a atenção quando a amante parece fraquejar ou se desorientar, a ponto de perder o horário do nascer do Sol. "Está jogando um jogo perigoso!" ela diz, entre um beijo apaixonado e outro, enquanto as duas lavam o sangue dos corpos sob o chuveiro, "Mate-o antes que seja tarde!" Por que Fran enrola tanto para matar Ted? Mantendo-o exaurido no quarto, com aquele corte aflitivo no braço, tão semelhante a uma... vagina?😶 E o que ela vê em Harriet quando se aproximam dela ao anoitecer, enquanto a moça segue pintando o seu retrato de Oakley Court? "Eu sempre soube que nos encontraríamos," diz Fran, tocando de leve a testa dela, "por este sinal, te reconheço". Há uma insinuação ambígua de irmandade nesse gesto, que, no entanto, não a salva de ser a única mulher vítima da fúria bacante das vampyres.

"Nada é bom demais para ser verdade."
diz Miriam, logo antes de arrancar um belo
naco de carne da cara de um playboy.
Tem como não amar?❤️
E a morte de Harriet é, sem dúvida, a mais dolorosa e agoniante. Pra audiência, quero dizer. Os homens a gente não está nem aí, muito pelo contrário. É até catártico de ver aquele sorrisinho besta sumir dos lábios do "connoisseur" de vinho, quando Miriam lhe arranca um belo naco de carne entre um beijo e outro (e Anulka Dziubinska fica tão linda com o vermelho vivo contrastando com a palidez da pele e os seus cabelos loiros❤️). Nem mesmo o marido de Harriet nos desperta muita simpatia. Ok, ele é "bonzinho", mas isso não o impede de tratar os medos da esposa com um misto de condescendência e desdém. Agora, quando é Harriet quem vemos sendo arrastada aos gritos até o porão (onde, poucas horas antes havia flagrado Fran em seu sono diurno, e quase topado com Miriam escapulindo de fininho) e tendo as suas roupas rasgadas e arrancadas numa cena seca e cruel, que nos remete desconfortavelmente a um estupro, é como se alguma coisa se partisse. O que? Não sabemos muito bem... mas um limiar parece ter sido ultrapassado. Talvez no filme... talvez em nós. De algum modo, a marcha de Miriam e Fran pelo cemitério parece mais sofrida e desajeitada naquele amanhecer. Ou seria só impressão? Quando elas se falam, não é sobre Harriet, é sobre Ted. "Não podemos deixar que ele escape com vida!" Fran diz, exasperada. Seria só um modo de dizer, ou alguma regra daquela existência sobrenatural estaria sendo quebrada? "Temos que ir, Fran! Agora!" Miriam ordena, firme, pragmática como sempre, a despeito da postura servil. Elas se olham, por um instante, apoiadas numa lápide qualquer, ofegantes e trêmulas, e seu olhar parece atravessado por uma profunda tristeza. Uma fadiga da alma, que não tínhamos visto nelas até então. Nunca estiveram tão lindas, as duas.


E é aí que elas desaparecem por entre os túmulos, talvez pela última vez. Decerto a última do filme, que terminará com Ted acordando no carro, como se de um sonho, milagrosamente vivo, e dando o fora bem rapidinho, antes de ter a chance de ouvir o corretor contar histórias sobre as supostas fantasmas que assombram a mansão. E não é curioso que Larraz tenha optado por nunca nos mostrar os seus túmulos? Seria uma coisa até meio óbvia, quem sabe naquela hora em que a Harriet seguiu as duas até o cemitério. Mas não... Não seria tão fácil assim. E, afinal, será que as vimos fazendo realmente algo que mulheres vivas também não pudessem fazer?

"Muito bem, e como é que isso fecha? Qual a sua interpretação para o filme?" Gente, como assim? Não fecha! Por que eu cometeria uma heresia dessas com um filme que amo tanto? O ponto é justamente esse: é nas suas fendas que as Vampyres nos entregam aquilo que têm de mais precioso (trocadilho não intencional😁). Se tentássemos "explicá-las", poderia restar apenas uma única forma de encara-las. O que, no fim, é uma escolha. Sempre é uma escolha. Dá pra liquidar tudo isso com um dar de ombros e um comentário jocoso, tipo "Ah, é só um roteiro ruim e cheio de furos!" E pode ser. Eu não vou ficar aqui teimando o contrário. Verdade seja dita, não são todos os filmes do Larraz que me agradam, e nem tenho lá tanta evidência de que, aqui, ele não estivesse interessado apenas em aproveitar que Marianne e Anulka (e a Sally?🤨) estariam dispostas a passar um terço do filme peladas. Vale lembrar, entretanto, que o outro filme que Larraz fez nessa sua fase britânica foi o maravilhosamente sensível e deslumbrante Symptoms, lançado nesse mesmo ano de 1974. E o tipo de requinte estético e cuidado com a encenação e a direção de arte que vemos em ambos os filmes, não é algo que se possa associar tão facilmente com desleixo (experimenta dar uma espiada no remake de 2015, pra ver o quão desleixado e tosco um filme desses pode ser😉). De minha parte, me parece mais compensador encarar os pontos cegos e as aparentes incongruências como mistérios. E quando acordar de madrugada, sem saber ao certo que horas são, porque o meu relógio parou, ficar pensando das palavras de Fran, enquanto a observo dormindo ao meu lado, com os seus olhos castanhos bem abertos: "É assim que eu devo ser aceita. Sem perguntas e sem explicações."🤫

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