sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Mistério e Imaginação: o Drácula de 1968


Se tem uma coisa que eu não estava esperando ao assistir uma adaptação de Drácula feita para a televisão britânica, em 1968, era ver uma cena de sedução lésbica absolutamente franca e despudorada, sem a menor tentativa de disfarce ou escamoteação.😮

Dali em diante, o longa inteiro ganhou um novo brilho pra mim. Confesso que, até então, eu estava numa vibe meio blasé. Isso rola as vezes. Quando o hábito de garimpar obscuridades do gótico old school acaba se tornando um fim em si mesmo, tipo mania ou colecionismo, e você mal registra o que está assistindo, focando apenas em dar mais um check num novo item para a coleção.

Denholm Elliot, majestoso sobre a cova
não-consagrada do cemitério de Whitby, em
Mas depois dessa, o filme se reorganizou na minha cabeça. E passei a me ligar que esse Drácula do Patrick Dromgoole era de fato uma reinterpretação notável, e que quase poderia entrar naquele meu velho artigo sobre as adaptações "mais fiéis" ao clássico. Não chega lá, eu acho, mas só porque o roteiro de Charles Graham ainda se ancora muito na peça teatral do Hamilton Deane, com aquele "Drácula de Salão", que serviu de base pra quase todas as versões. Algo, talvez, um tanto inevitável, considerando que Mystery and Imagination ainda era, em princípio, uma série de teleteatro, mesmo que, no final dos anos 60, a coisa já estivesse bem longe, tecnicamente falando, daquele formato de multi-câmera dos tempos da televisão ao vivo.

Todavia, a adaptação resgata muita coisa do livro. Incluindo elementos que dificilmente são vistos fora do original de Stoker. Nem mesmo o autodeclarado Drácula de Bram Stoker, do Coppola, chegou a incluir a cova não-consagrada do cemitério costeiro de Whitby. Um detalhe importante, que muita gente sequer nota quando lê o livro da primeira vez (eu mesmo só reparei na segunda, ou até na terceira leitura, provavelmente só depois de ter aprendido um pouquinho mais sobre as peculiaridades da ética cristã no que se refere ao serviço fúnebre para suicidas).🤔


Mas o que me pega mesmo... é a ousadia. É a Susan George, no auge dos seus 18 aninhos, entregando uma Lucy deliciosamente exagerada e fogosa, assoprando um beijo a milímetros dos lábios de Suzanne Neve, que, literalmente, revira os olhos em êxtase! Ok, isso não seria nada num gótico italiano dessa mesma época, muito menos no luxuriante cinema francês do mesmo período (1968 não foi o ano que o Jean Rollin causou tumulto num cinema da França ao exibir Le viol du vampire pela primeira vez?😅), mas na televisão britânica?! Essa eu não esperava mesmo! E menos ainda esperava descobrir, a essa altura do campeonato, que foi daqui que o Coppola tirou aquela ceninha enigmática do seu filme de 1992, quando a Sadie Frost e a Winona Ryder aparecem, do nada, se beijando atrás de uma cerca viva, em meio ao labirinto dos jardins. Um momento mágico do tipo "piscou perdeu", e apenas uma de uma quantidade aparentemente infinita de citações a tudo quanto é versão de Drácula da história do cinema. O maior mérito do filme do Coppola, na real, para além de qualquer "fidelidade".

"A vida, para mim, é requintada, excitante,
eterna!
" Susan George, regozijando-se
no êxtase dos mortos-vivos.
Ok, é o velho tropo da vampira lésbica mais uma vez, beleza. Aqui ainda temperado pela performance estilo "cafetão das trevas" do Denholm Elliot, que realmente me surpreendeu no papel do conde. Não que eu não o considerasse um grande ator, mas tinha dificuldade de imagina-lo num papel tão abertamente maligno. O seu Drácula tem algo de repugnante, num nível bem mais visceral do que o personagem tendia a ser retratado. No mesmo ano, Christopher Lee, já estava invadindo quartos de mocinhas indefesas pela terceira vez, mas elas sempre pareciam meio que esperar acordadas, numa espécie de antecipação ambígua, enquanto que Elliot se posta sorrateiro ao lado da cama de uma Lucy adormecida, e aguarda pacientemente, com o seu ar blasé, até que Susan George "termine de gozar" diante de sua mera presença. Só aí revelando aquela arcada dentária, moldada literalmente a partir de um morcego, para ferroar sua garganta com a volúpia de um inseto hematófago. Imagem poderosa de corrupção e abuso, que, como sempre, tanto pode ser interpretada como a demonização de uma sexualidade jovem e livre (e da lesbianidade em particular) quanto como a opressão dos poderes estabelecidos sobre essa mesma sexualidade, sempre ansiosos para controla-la, ou, se possível, fagocitá-la. A leitura, claro, fica a gosto (e responsabilidade) da audiência, como demanda a boa e velha abordagem gótica.😉


E a julgar pelos tumblrs (e, mais recentemente, tiktoks) da vida, a garotada fez sua escolha, com os perfis mais bem informados (e, em geral, femininos) comumente listando a Lucy de Susan George como uma das mais queridas do histórico de adaptações. Até me envergonha ter demorado tanto pra conhecê-la. Mas é aquilo, né? Pra isso é preciso acesso e legendas, e Mystery and Imagination sempre teve muito pouco do primeiro e absolutamente nada das segundas, só agora facilitadas pelos novos serviços de transcrição de áudio e o deepseek. E que série deliciosa ela era!😍 As temporadas finais, de 1968 e 1970, das quais o Drácula fez parte, somam nada menos que seis notáveis adaptações de clássicos da literatura gótica em longa metragem, indo desde o Frankenstein com o Ian Holm fazendo ambos os papéis, do doutor e do monstro, até A Jóia das Sete Estrelas, do Bram Stoker (adaptado como Curse of the Mummy, e um elenco tarimbado de figurinhas da Hammer Films), passando pelo Clube do Suicídio, de Robert Louis Stevenson, Uncle Sylas, de Sheridan Le Fanu, e uma releitura incrivelmente sombria de Sweeney Todd, que muito pouco lembra aquele musical macabro, mas, acima de tudo, divertido, do Tim Burton.

Susannah York, transformando a vítima
em protagonista, nas imagens promocionais
coloridas de A Queda da Casa de Usher
(o episódio, de 1966, era preto e branco).
Mas o maior destaque, pra mim, ao lado do Drácula, é mesmo a adaptação livre, de 1966, de A Queda da Casa de Usher. Um dos dois únicos segmentos da primeira fase da série a sobreviver às inacreditáveis políticas de "reaproveitamento de fita" das redes de televisão britânicas nos anos 60 (o outro sendo o fidelíssimo A Porta Aberta, de Margaret Oliphant). E isso porque Susannah York torna a quase invisível Madeleine Usher, do conto, a legítima protagonista da história, num desempenho tão febril e alucinante que, de certa forma, parece antecipar, e mesmo se harmonizar, com a espevitadíssima Lucy de Susan George. Impressão reforçada por também contar com Denholm Elliot como seu vampiresco e, claro, incestuoso irmão Roderick, numa mudança de foco bastante bem vinda em relação ao original de Poe, sempre com suas mulheres etéreas, idealizadas e, no limite, ausentes, fazendo dessa versão um caso praticamente único dentre todas as adaptações.

O que só torna ainda mais triste não termos acesso a nada além desses dois títulos, dentre os 18 que a ABC produziu, e a ITV veiculou, durante essas três primeiras temporadas no formato de 50 minutos por episódio. Dizem por aí que há um lugar especial no inferno para quem desperdiça um bom scotch. Quando eu vejo as imagens de divulgação de segmentos como O Fantasma de Canterville, e, acima de tudo, Carmilla, eu quero acreditar que seja até suave em comparação com o reservado para os responsáveis pelos acervos da ITV (e da BBC) nessa época. Parece pouco provável, a essa altura, que cópias sobreviventes ainda possam vir a surgir de algum lugar do mundo, como chegou a acontecer com alguns episódios do Doctor Who. A esperança, como se diz, é a última que morre, mas, como eu comentava naquele meu outro artigo, em relação a Tyburn Films, isso pouco adianta se você morre primeiro. Ao menos os longas do período da Thames Television estão todos aí, na íntegra, três em preto e branco, e três coloridos, para a nossa apreciação e deleite. E desempenhos como os de Susannah York e Susan George jamais irão se perder no tempo, continuando a nos afetar para sempre, como diria Lucy, "requintados, excitantes... e eternos". 



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