sexta-feira, 18 de julho de 2025

As Últimas "Ghost Stories for Christmas" (ou quase isso)


A adaptação de Casting the Runes de 1979 têm sido o ponto cego do meu dossiê das Ghost Stories for Christmas desde que postei a "versão final" pela primeira vez, há sei lá quanto tempo. E por uma razão bem simples: eu nunca tive chance de assistir. Era o único derivado da série original que não tinha nenhuma legenda disponibilizada na internet. Em nenhum idioma! O que exigia que quem quer que se aventurasse a criar a legenda tivesse a manha de fazer de ouvido, o que não é nem de longe o meu caso. Não com aquele inglês britânico, cheio de idiossincrasias, dos anos 70. Assim, a ideia de incluir os derivados entre os textos do dossiê sempre ficou meio de lado, exceto pelos indispensáveis Whistle and I'll Come to You, de 1968 (que, afinal, fez parte até dos boxes de DVD e Bluray), e Schalcken the Painter, de 1979 (que, admito que forço um pouco a barra para manter lá, uma vez que, oficialmente, ele é tão parte da série quanto The Stone Tape, por exemplo, mas é simplesmente perfeito demais pra que eu o deixasse de fora). Os demais, eu apenas citei, assim meio an passant, dando a entender quais seriam os meus favoritos e desfavoritos. E assim a coisa ficou.

Bernard Gallagher e Jan Francis em
Casting the Runes (1979), a última das
Ghost Stories for Christmas de Lawrence
Gordon Clark
, só que agora na ITV.
Mas eis que a tecnologia produziu seus milagres. E ainda que a Inteligência Artificial se revele cada vez mais como um custoso embuste, "nem inteligente, nem artificial", como diria o sábio Miguel Nicolelis, para os connoisseurs bucaneiros do mundo todo, ela trouxe umas ferramentas novas impossíveis de serem ignoradas. Eu já tinha ficado chocado com a qualidade absurda das traduções do DeepSeek, que, simplesmente, te entrega uma legenda quase perfeita, e sem mexer na estrutura dos timecodes, a partir de uma simples entrada em txt, num resultado que só precisa de um mínimo de correções de contexto, em geral mais relacionadas às atribuições de gênero. A isso, veio a se somar os serviços de transcrição de áudio online capazes de gerar uma legenda em srt a partir de um arquivo mkv com uma precisão fabulosa. Rola uns erros, é claro, mais de sincronia do que acurácia, mas o salto de qualidade seria da ordem do impensável até uns poucos anos atrás. Com essas duas ferramentas combinadas, Casting the Runes pôde enfim se tornar acessível à amantes do gótico old school que falem português, independente de seu nível de expertise tecnológica, ou conhecimento em idiomas.

O inesquecível espectro de The Stone Tape
(1972), de Nigel Kneale e Peter Sasdy
Seria a hora de fazer, então, o dossiê dos derivados das Ghost Stories for Christmas? Então... não. Não exatamente. Diferente da série em si, os chamados related works não são bem um conjunto homogêneo. Estricto senso, são obras independentes, de gêneses bastante distintas, que, de uma forma ou de outra, acabaram associadas à tradição das Ghost Stories for Christmas por ocasião do lançamento, ou mesmo a posteriori. E, sendo honesto, nem todos valem a pena. Os três últimos, exibidos entre 2006 e 2009, quando o revival da série já estava sendo produzido, ainda que irregularmente, são no máximo assistíveis, e isso pra ser (bem) bonzinho. The Haunted Airman, lançado originalmente no halloween de 2006, mas ligado às Ghost Stories por ocasião da reprise em dezembro de 2007, é mais notável por ser um dos primeiros veículos de Robert Pattinson do que por qualquer mérito na adaptação do romance ocultista de Dennis Wheatley. A minissérie Crooked House (depois reeditada como um único filme portmanteau, mais interessado na tradição da Amicus Productions do que necessariamente nas Ghost Stories for Christmas) é... bacaninha. Como os episódios que seu diretor, Mark Gatiss, tem feito para o revival desde então.😏 Mas só. Exibida entre 22 e 24 de dezembro de 2008, provavelmente seria um esforço esquecido, não fosse a sua associação com a série. Mas ao menos tem sua dignidade, ao contrário da constrangedora nova versão de The Turn of the Screw lançada em dezembro de 2009. Sem dúvida o troço mais vergonhoso já vinculado às Ghost Stories for Christmas, e prova cabal de que, depois de Os Inocentes (1961), ninguém tem justificativa pra adaptar A Volta do Parafuso outra vez.

E nisso ficamos com as obras primas dos anos 70. Só que duas delas, Whistle and I'll Come to You e Schalcken the Painter já foram devidamente tratadas no dossiê das Ghost Stories. Não havia porque remanejar pra cá. E enfiar The Stone Tape e Casting the Runes no meio da já inchada (e crescente) postagem original, me pareceu não só desajeitado, como falho em dar o destaque que essas duas pérolas merecem. Então resolvi fazer essa espécie de "adendo", já aproveitando o ensejo para retomar as canônicas postagens de sexta-feira à meia-noite (ainda que não de forma necessariamente semanal, dessa vez😁). Assim, com vocês, as "últimas" Ghost Stories for Christmas (dos anos 70).😉


DETALHE IMPORTANTE:
Seguindo a tradição do dossiê da série, estou disponibilizando os links para os episódios, naquele mesmo formato da postagem original, mas minha política sobre downloads não mudou, e nem vai mudar. Então não se acostumem mal.😉


Casting the Runes (1979)
de M. R. James, adaptado por Clive Exton e dirigido por Lawrence Gordon Clark

Lançando as Runas é, provavelmente, a mais adaptada das histórias de M.R. James, tanto direta quanto indiretamente. Foi a base de um maiores clássicos do cinema gótico britânico dos anos 50, o genial A Noite do Demônio (1957) de Jacques Tourneur, e o episódio de estreia da terceira série de Mystery and Imagination, da ITV, em 1968 (um dos vários segmentos hoje considerados perdidos, um clipe de três minutos foi tudo que restou). Fora isso, se você prestar atenção, vai encontrar "ecos" de seu enredo em trocentos filmes, livros e HQs por aí. Alguns bem na cara, como o debochado Arrasta-me Para o Inferno, de Sam Raimi (que, alegadamente, se inspirou muito mais no filme de Tourneur, mas bem que poderia ser considerado como uma releitura livre - e muito mais perversa - da história). Já outros parecem insuspeitos, até que você se dá conta de que assistir a fita amaldiçoada da Sadako tem basicamente o mesmo efeito de se receber um "ticket" com as runas (o "seven days" do remake americano faz a relação se tornar ainda mais óbvia, ecoando aquele lance do "tempo que lhe é permitido" do conto). No limite, tem um pouquinho de Lançando as Runas em qualquer variação do tema: "correndo contra o tempo pra se livrar de uma maldição". Especialmente se o método pra se safar envolve devolver o "encosto" para quem o lançou, ou passá-lo para uma outra pessoa, como no A Maldição do Cigano, do velho King.

Dada essa permanência, é muito provável que a adaptação de Clive Exton e Lawrence Gordon Clark não chegue a causar uma grande impressão. Ela não tem aquela opulência mórbida e as viradas macabras da versão de Tourneur, muito menos o final subversivo e o inacreditável "bode na sala" da extravagância sacana do Sr. Raimi (eu tenho um amigo que sentiria falta daquele bode😅). Não, o Casting the Runes de 1979 é um exercício frio de sobriedade e comedimento, que segue o passo a passo da investigação do modus operandi das runas com um distanciamento desapaixonado e clínico, sem grandes arroubos. O que não deixa de ser, é claro, a abordagem do próprio James, e das Ghost Stories for Christmas em sua fase setentista. De fato, não seria absurdo supor que esse poderia ter sido o episódio do Natal de 1978 se Clark não tivesse saído da série logo após aquela guinada esquisita que abandonou as adaptações de M.R. James em prol de roteiros originais e ambientação contemporânea. Não me espantaria se Casting the Runes tivesse sido sua proposta original para "modernizar" a série e antená-la melhor aos novos paradigmas do gênero que estavam em ascensão no período, como a BBC queria. Ao remanejar o enredo pro presente, e botar a intrépida repórter de Jan Francis pra lidar com o rancoroso Sr. Karswell de Iain Cuthbertson, cria-se logo de cara todo um embate entre bruxaria antiga e a tecnologia do mundo moderno, o que me parece um caminho bem mais interessante pra se seguir do que largar a literatura clássica de uma vez, como a série acabaria fazendo. Será que foi assim que a coisa rolou? Eu não sei. Só sei que a mesma dupla criativa já tinha sido responsável por Stigma no Natal de 1977, e, no natal de 1978, a última Ghost Story for Christmas dos anos 70 foi ao ar já sem a participação de Clark. Em abril de 1979, não mais do que quatro meses depois, Casting the Runes foi exibido pela primeira vez, não pela BBC, mas pela ITV Yorkshire. Uma sequencia de eventos bastante sugestiva, pra dizer o mínimo.🤔

Teorias da conspiração a parte, assistir Casting the Runes hoje, depois de passar todos esses anos resenhando (não curto essa palavra, prefiro divagando) os não mais que razoáveis episódios do revival das Ghost Stories for Christmas, sob a batuta de Mark Gatiss, é como me deparar com um episódio perdido da série original setentista, e confirmar que eu não estou viajando: era mesmo MUITO melhor!🤩 E sem precisar de arroubos, bodes, ou mesmo das goth-fofices e sacadinhas (metidas a) espertas dos episódios do Sr. Gatiss. É justamente na frieza e no distanciamento que implicações mais sinistras vão se fazendo sentir nos devaneios mais íntimos da audiência, se realizando naquele limiar quase incognoscível entre o consciente e o inconsciente. É quando a pele sente, ainda que a mente rejeite, aquele rastejar de patas de aranha pelo corpo, debaixo dos lençóis da cama, sem que você possa fazer nada pra evitar. "O que ele tocou, de acordo com sua impressão, foi uma boca, com dentes, e pêlos ao redor; e não era, ele garante, a boca de um ser humano". James escreveu isso em 1911, e é fascinante a simplicidade com que Clark atinge o mesmo efeito nos seus próprios termos e nos termos do audiovisual. Não digo que seja a melhor versão do conto, a honra continua sendo de Tourneur e de Niall MacGinnis no papel do diabólico Dr. Julian Karswell. Mas Casting the Runes impressiona pela fidelidade às sensações do conto original, independente das mudanças de contexto. E ainda que não haja disputa possível com o genial jogo cênico do "passa as runas" entre MacGinnis e Dana Andrews no desfecho de A Noite do Demônio, a solução de Clark é tão simples e elegante que, confesso, me pegou totalmente desprevenido!😮 Deixando ainda no ar uma impressão bastante funesta de que, talvez, não seja possível vencer o mal com suas próprias armas. Não sem acabar, de alguma forma, se maculando no processo. 



The Stone Tape (1972)
escrito por Nigel Kneale e dirigido por Peter Sasdy

The Stone Tape foi lançado sete anos antes de Casting the Runes, mas eu realmente precisava deixa-lo por último. Foi exibido pela BBC em 25 de dezembro de 1972, um dia depois de A Warning to the Curious, o segundo episódio das Ghost Stories for Christmas. E, mesmo naquela época, muitos já concordavam que, apesar da associação natalina, essa era uma criatura de outro tipo. Não que não seja uma história de fantasmas, ou mesmo que compartilhe de muitas das temáticas caras a M.R. James, como a permanência de um mal ancestral, que se faz sentir no mundo secular. Mas a pegada aqui é outra. Tão fascinante quanto, e, talvez até, um tanto mais sinistra. Afinal, essa é uma história de Nigel Kneale, e quem conhece as aventuras do Prof. Quatermass, seja pela Hammer Filmes ou pelas séries da BBC, e já assistiu a aterradora adaptação de A Mulher de Preto pela ITV Granada, sabe muito bem o que se pode esperar... e será pego de surpresa mesmo assim.

Pra começo de conversa, não é toda obra de horror que pode se orgulhar de ter dado origem a um termo científico. Quer dizer, pseudocientífico, não vamos brincar com esse tipo de coisa (ainda mais hoje em dia). Já ouviu falar da "teoria da fita de pedra"? Pode ser que não com esse nome em específico, mas há uma grande chance de que você já tenha topado por aí com a ideia de que certos ambientes podem, de alguma maneira, "gravar" momentos do tempo. Em especial, aqueles que envolvem emoções intensas, violentas ou "negativas". De que o que entendemos como "fantasmas", poderia ser a "reprodução" desses fragmentos do passado, registrados diretamente na estrutura física de uma casa, uma localidade, ou mesmo um objeto. Parapsicólogos, ocultistas, e até algumas vertentes do espiritualismo, se referem ao fenômeno como "the stone tape theory", e é curioso como nem todos os "especialistas" têm noção que o termo teria surgido, justamente, numa obra de ficção. Ok, variações da ideia sempre existiram. O Funil de Couro, de Arthur Conan Doyle, seria um exemplo clássico em literatura, e o próprio Kneale teria se inspirado em histórias sobre um pub na Cornualha onde as conversas dos antigos frequentadores ainda poderiam ser ouvidas se você prestasse atenção aos murmúrios que ecoam das paredes de pedra. Mas me parece certo que o conceito só se popularizou de fato como "teoria" a partir dos anos 70, quando, coincidentemente, The Stone Tape apareceu.

E não me admira que tenha "pegado". Há algo de inerentemente poderoso nessa ideia. Uma espécie de "racionalização", perfeitamente "lógica", de temores ancestrais profundamente enraizados. E poucas vezes isso nos foi apresentado de forma tão efetiva quanto aqui. Kneale constrói seu jogo com coerência e paciência, fazendo com que os seus personagens, todos técnicos e cientistas, acostumados a encarar os fenômenos da natureza com objetividade e fascínio, reajam à "assombração" que empaca o cronograma de trabalho de seu laboratório de pesquisa em mídias alternativas, como algo bem mais interessante do que assustador. E isso faz todo sentido numa abordagem "realista", por mais que contradiga o senso comum. Sempre achei que uma das cenas mais "realistas" da história do gênero é a sequencia de abertura de Um Lobisomem Americano em Londres, quando David NaughtonGriffin Dunne ficam zoando cada vez mais conforme se dão conta de que tem mesmo algo medonho espreitando-os na charneca. É exatamente o que eu, você, e a maioria das pessoas faria diante de algo inconcebível, assustador e/ou sobrenatural. Tiraria onda, enquanto fosse possível. Até que o horror propriamente dito se tornasse incontornável. E é aí que surtamos. Exatamente como Naughton, fazendo o exato oposto de tudo o que a gente quer acreditar que faria, se estivesse no lugar dele.

Mas conforme os lamentos da "fantasma" se repetem, e a sala assombrada se torna cada vez mais opressiva e claustrofóbica, a angústia da situação começa a vazar pela fachada de camaradagem e as rotinas de trabalho, suplantando embaraços e pudores. O histórico daquela velha mansão, transformada em centro de pesquisa pela empresa de eletrônicos, vai deixando de ser apenas um curioso conjunto de dados e passa a constituir histórias, dores, e vidas. E o significado da recorrência agoniante de gritos aterrorizados (e aterrorizantes) que emana das paredes de pedra já não pode mais ser abstraído, muito menos deixar de ser especulado. "É só a ideia disso, entende?" nos diz Jane Asher, em meio às lágrimas, "De que tudo o que resta de você é só o bastante pra repetir o pior momento de sua vida, para sempre". No que seu amante (e chefe), Michael Bryant, retruca, impaciente: "Isso não existe, é só um mecanismo morto". Mais cedo na trama, ela já havia constatado que o hiperativo e aparentemente insensível coordenador parecia "não querer que a fantasma estivesse viva". E estaria? Viva? Os fantasmas... "sobrevivem", como se diz no jargão da parapsicologia? Cientes de sua condição? "Poderia haver algo de consciente ali?" Ou tudo não passa de registros em pedra, como os técnicos especulam? Nada mais do que um "tape" do passado. Uma possibilidade. Essa não poderia ser a tal da "nova técnica" que estavam ali pra pesquisar? Uma novo tipo de mídia, pronto para ser patenteado e vendido? "Isso é horrível... mas é melhor do que ela saber. Eu não suportaria se ela soubesse", conclui Asher, preconizando um dos finais mais angustiantes da história da ficção de horror.

Em suma, The Stone Tape é uma porrada. Que, de fato, pouco tem a ver com o formato mais tradicional das Ghost Stories for Christmas. Mesmo em seus momentos mais pesados, a série nos acalentava com uma vibe de "contação de histórias", que era, ao mesmo tempo, arrepiante e aconchegante. Kneale não está interessado em nos poupar. Sua "fita de pedra" é um mecanismo tão perverso quanto a sala macabra que desafia a racionalidade dos técnicos. Ela nos envolve e nos convence, abrindo pouco a pouco brechas em nossas reservas de ceticismo. Até nos confrontar, de súbito, com implicações bem mais perturbadoras do que achávamos que iríamos ter que encarar. É quando nos damos conta de que o que imaginávamos ser uma história de fantasmas, era na verdade um conto de horror cósmico, e aí já é tarde demais pra escapar. No fim, faz todo sentido que a BBC optasse por produzi-lo como um longa independente, ao invés do episódio final da antologia Dead of Night (1972) como havia sido originalmente programado (imagina se tivesse sido perdido, como quatro dos sete episódios da série?!). É simplesmente singular demais pra fazer parte de um "pacote", seja ele qual for. Seu impacto é indelével. Uma influência que, assim como rola com os ocultistas, independe de se saber de onde a ideia teria surgido. A "fita de pedra" seguirá sendo reproduzida. Outra, e outra, e outra vez. Até que tudo que reste de nós, espécie acidental e fugidia que um dia sonhou que tinha alguma significância, seja o eco dos nossos gritos, emanando debilmente dos montes ancestrais de rocha.

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