A adaptação de Casting the Runes de 1979 têm sido o ponto cego do meu dossiê das Ghost Stories for Christmas desde que postei a "versão final" pela primeira vez, há sei lá quanto tempo. E por uma razão bem simples: eu nunca tive chance de assistir. Era o único derivado da série original que não tinha nenhuma legenda disponibilizada na internet. Em nenhum idioma! O que exigia que quem quer que se aventurasse a criar a legenda tivesse a manha de fazer de ouvido, o que não é nem de longe o meu caso. Não com aquele inglês britânico, cheio de idiossincrasias, dos anos 70. Assim, a ideia de incluir os derivados entre os textos do dossiê sempre ficou meio de lado, exceto pelos indispensáveis Whistle and I'll Come to You, de 1968 (que, afinal, fez parte até dos boxes de DVD e Bluray), e Schalcken the Painter, de 1979 (que, admito que forço um pouco a barra para manter lá, uma vez que, oficialmente, ele é tão parte da série quanto The Stone Tape, por exemplo, mas é simplesmente perfeito demais pra que eu o deixasse de fora). Os demais, eu apenas citei, assim meio an passant, dando a entender quais seriam os meus favoritos e desfavoritos. E assim a coisa ficou.
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Bernard Gallagher e Jan Francis em Casting the Runes (1979), a última das Ghost Stories for Christmas de Lawrence Gordon Clark, só que agora na ITV. |
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O inesquecível espectro de The Stone Tape (1972), de Nigel Kneale e Peter Sasdy. |
E nisso ficamos com as obras primas dos anos 70. Só que duas delas, Whistle and I'll Come to You e Schalcken the Painter já foram devidamente tratadas no dossiê das Ghost Stories. Não havia porque remanejar pra cá. E enfiar The Stone Tape e Casting the Runes no meio da já inchada (e crescente) postagem original, me pareceu não só desajeitado, como falho em dar o destaque que essas duas pérolas merecem. Então resolvi fazer essa espécie de "adendo", já aproveitando o ensejo para retomar as canônicas postagens de sexta-feira à meia-noite (ainda que não de forma necessariamente semanal, dessa vez😁). Assim, com vocês, as "últimas" Ghost Stories for Christmas (dos anos 70).😉
DETALHE IMPORTANTE:
Seguindo a tradição do dossiê da série, estou disponibilizando os links para os episódios, naquele mesmo formato da postagem original, mas minha política sobre downloads não mudou, e nem vai mudar. Então não se acostumem mal.😉
de M. R. James, adaptado por Clive Exton e dirigido por Lawrence Gordon Clark
Dada essa permanência, é muito provável que a adaptação de Clive Exton e Lawrence Gordon Clark não chegue a causar uma grande impressão. Ela não tem aquela opulência mórbida e as viradas macabras da versão de Tourneur, muito menos o final subversivo e o inacreditável "bode na sala" da extravagância sacana do Sr. Raimi (eu tenho um amigo que sentiria falta daquele bode😅). Não, o Casting the Runes de 1979 é um exercício frio de sobriedade e comedimento, que segue o passo a passo da investigação do modus operandi das runas com um distanciamento desapaixonado e clínico, sem grandes arroubos. O que não deixa de ser, é claro, a abordagem do próprio James, e das Ghost Stories for Christmas em sua fase setentista. De fato, não seria absurdo supor que esse poderia ter sido o episódio do Natal de 1978 se Clark não tivesse saído da série logo após aquela guinada esquisita que abandonou as adaptações de M.R. James em prol de roteiros originais e ambientação contemporânea. Não me espantaria se Casting the Runes tivesse sido sua proposta original para "modernizar" a série e antená-la melhor aos novos paradigmas do gênero que estavam em ascensão no período, como a BBC queria. Ao remanejar o enredo pro presente, e botar a intrépida repórter de Jan Francis pra lidar com o rancoroso Sr. Karswell de Iain Cuthbertson, cria-se logo de cara todo um embate entre bruxaria antiga e a tecnologia do mundo moderno, o que me parece um caminho bem mais interessante pra se seguir do que largar a literatura clássica de uma vez, como a série acabaria fazendo. Será que foi assim que a coisa rolou? Eu não sei. Só sei que a mesma dupla criativa já tinha sido responsável por Stigma no Natal de 1977, e, no natal de 1978, a última Ghost Story for Christmas dos anos 70 foi ao ar já sem a participação de Clark. Em abril de 1979, não mais do que quatro meses depois, Casting the Runes foi exibido pela primeira vez, não pela BBC, mas pela ITV Yorkshire. Uma sequencia de eventos bastante sugestiva, pra dizer o mínimo.🤔
Lançando as Runas é, provavelmente, a mais adaptada das histórias de M.R. James, tanto direta quanto indiretamente. Foi a base de um maiores clássicos do cinema gótico britânico dos anos 50, o genial A Noite do Demônio (1957) de Jacques Tourneur, e o episódio de estreia da terceira série de Mystery and Imagination, da ITV, em 1968 (um dos vários segmentos hoje considerados perdidos, um clipe de três minutos foi tudo que restou). Fora isso, se você prestar atenção, vai encontrar "ecos" de seu enredo em trocentos filmes, livros e HQs por aí. Alguns bem na cara, como o debochado Arrasta-me Para o Inferno, de Sam Raimi (que, alegadamente, se inspirou muito mais no filme de Tourneur, mas bem que poderia ser considerado como uma releitura livre - e muito mais perversa - da história). Já outros parecem insuspeitos, até que você se dá conta de que assistir a fita amaldiçoada da Sadako tem basicamente o mesmo efeito de se receber um "ticket" com as runas (o "seven days" do remake americano faz a relação se tornar ainda mais óbvia, ecoando aquele lance do "tempo que lhe é permitido" do conto). No limite, tem um pouquinho de Lançando as Runas em qualquer variação do tema: "correndo contra o tempo pra se livrar de uma maldição". Especialmente se o método pra se safar envolve devolver o "encosto" para quem o lançou, ou passá-lo para uma outra pessoa, como no A Maldição do Cigano, do velho King.
Teorias da conspiração a parte, assistir Casting the Runes hoje, depois de passar todos esses anos resenhando (não curto essa palavra, prefiro divagando) os não mais que razoáveis episódios do revival das Ghost Stories for Christmas, sob a batuta de Mark Gatiss, é como me deparar com um episódio perdido da série original setentista, e confirmar que eu não estou viajando: era mesmo MUITO melhor!🤩 E sem precisar de arroubos, bodes, ou mesmo das goth-fofices e sacadinhas (metidas a) espertas dos episódios do Sr. Gatiss. É justamente na frieza e no distanciamento que implicações mais sinistras vão se fazendo sentir nos devaneios mais íntimos da audiência, se realizando naquele limiar quase incognoscível entre o consciente e o inconsciente. É quando a pele sente, ainda que a mente rejeite, aquele rastejar de patas de aranha pelo corpo, debaixo dos lençóis da cama, sem que você possa fazer nada pra evitar. "O que ele tocou, de acordo com sua impressão, foi uma boca, com dentes, e pêlos ao redor; e não era, ele garante, a boca de um ser humano". James escreveu isso em 1911, e é fascinante a simplicidade com que Clark atinge o mesmo efeito nos seus próprios termos e nos termos do audiovisual. Não digo que seja a melhor versão do conto, a honra continua sendo de Tourneur e de Niall MacGinnis no papel do diabólico Dr. Julian Karswell. Mas Casting the Runes impressiona pela fidelidade às sensações do conto original, independente das mudanças de contexto. E ainda que não haja disputa possível com o genial jogo cênico do "passa as runas" entre MacGinnis e Dana Andrews no desfecho de A Noite do Demônio, a solução de Clark é tão simples e elegante que, confesso, me pegou totalmente desprevenido!😮 Deixando ainda no ar uma impressão bastante funesta de que, talvez, não seja possível vencer o mal com suas próprias armas. Não sem acabar, de alguma forma, se maculando no processo.
escrito por Nigel Kneale e dirigido por Peter Sasdy
Pra começo de conversa, não é toda obra de horror que pode se orgulhar de ter dado origem a um termo científico. Quer dizer, pseudocientífico, não vamos brincar com esse tipo de coisa (ainda mais hoje em dia). Já ouviu falar da "teoria da fita de pedra"? Pode ser que não com esse nome em específico, mas há uma grande chance de que você já tenha topado por aí com a ideia de que certos ambientes podem, de alguma maneira, "gravar" momentos do tempo. Em especial, aqueles que envolvem emoções intensas, violentas ou "negativas". De que o que entendemos como "fantasmas", poderia ser a "reprodução" desses fragmentos do passado, registrados diretamente na estrutura física de uma casa, uma localidade, ou mesmo um objeto. Parapsicólogos, ocultistas, e até algumas vertentes do espiritualismo, se referem ao fenômeno como "the stone tape theory", e é curioso como nem todos os "especialistas" têm noção que o termo teria surgido, justamente, numa obra de ficção. Ok, variações da ideia sempre existiram. O Funil de Couro, de Arthur Conan Doyle, seria um exemplo clássico em literatura, e o próprio Kneale teria se inspirado em histórias sobre um pub na Cornualha onde as conversas dos antigos frequentadores ainda poderiam ser ouvidas se você prestasse atenção aos murmúrios que ecoam das paredes de pedra. Mas me parece certo que o conceito só se popularizou de fato como "teoria" a partir dos anos 70, quando, coincidentemente, The Stone Tape apareceu.
E não me admira que tenha "pegado". Há algo de inerentemente poderoso nessa ideia. Uma espécie de "racionalização", perfeitamente "lógica", de temores ancestrais profundamente enraizados. E poucas vezes isso nos foi apresentado de forma tão efetiva quanto aqui. Kneale constrói seu jogo com coerência e paciência, fazendo com que os seus personagens, todos técnicos e cientistas, acostumados a encarar os fenômenos da natureza com objetividade e fascínio, reajam à "assombração" que empaca o cronograma de trabalho de seu laboratório de pesquisa em mídias alternativas, como algo bem mais interessante do que assustador. E isso faz todo sentido numa abordagem "realista", por mais que contradiga o senso comum. Sempre achei que uma das cenas mais "realistas" da história do gênero é a sequencia de abertura de Um Lobisomem Americano em Londres, quando David Naughton e Griffin Dunne ficam zoando cada vez mais conforme se dão conta de que tem mesmo algo medonho espreitando-os na charneca. É exatamente o que eu, você, e a maioria das pessoas faria diante de algo inconcebível, assustador e/ou sobrenatural. Tiraria onda, enquanto fosse possível. Até que o horror propriamente dito se tornasse incontornável. E é aí que surtamos. Exatamente como Naughton, fazendo o exato oposto de tudo o que a gente quer acreditar que faria, se estivesse no lugar dele.
Em suma, The Stone Tape é uma porrada. Que, de fato, pouco tem a ver com o formato mais tradicional das Ghost Stories for Christmas. Mesmo em seus momentos mais pesados, a série nos acalentava com uma vibe de "contação de histórias", que era, ao mesmo tempo, arrepiante e aconchegante. Kneale não está interessado em nos poupar. Sua "fita de pedra" é um mecanismo tão perverso quanto a sala macabra que desafia a racionalidade dos técnicos. Ela nos envolve e nos convence, abrindo pouco a pouco brechas em nossas reservas de ceticismo. Até nos confrontar, de súbito, com implicações bem mais perturbadoras do que achávamos que iríamos ter que encarar. É quando nos damos conta de que o que imaginávamos ser uma história de fantasmas, era na verdade um conto de horror cósmico, e aí já é tarde demais pra escapar. No fim, faz todo sentido que a BBC optasse por produzi-lo como um longa independente, ao invés do episódio final da antologia Dead of Night (1972) como havia sido originalmente programado (imagina se tivesse sido perdido, como quatro dos sete episódios da série?!). É simplesmente singular demais pra fazer parte de um "pacote", seja ele qual for. Seu impacto é indelével. Uma influência que, assim como rola com os ocultistas, independe de se saber de onde a ideia teria surgido. A "fita de pedra" seguirá sendo reproduzida. Outra, e outra, e outra vez. Até que tudo que reste de nós, espécie acidental e fugidia que um dia sonhou que tinha alguma significância, seja o eco dos nossos gritos, emanando debilmente dos montes ancestrais de rocha.
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