terça-feira, 8 de agosto de 2017

Feiticeiros que assombram Fronteiras

Conheço muito menos do que gostaria a respeito do cinema de horror japonês, embora adore praticamente tudo o que vejo (exceto, claro, aquelas pencas de j-horror que surgiram na onda do interesse ocidental por Ringu e Ju-On, esses é preciso saber peneirar pra achar os realmente foda). Mas faz relativamente pouco tempo que comecei a ter acesso aos grandes clássicos do "gótico" japonês como Kwaidan (em sua versão completa), O Gato Preto (Kuroneko), Ghost Story of YotsuyaOnibaba, etc., e comecei a ter uma ideia melhor do estilo, temática e diretores representativos dos kaidan-eiga, além de me familiarizar com outros subgêneros como bakeneko, yōkai, kaiju, seguindo por fim para as correntes mais extremas do exploitation japonês, com um mínimo de noção de seu contexto.

Cartaz de Horrors of Malformed Men (1969),
com os siameses impossíveis em destaque.
Porém... não chega a ser fácil. Tem muita informação contraditória ou simplesmente errada na internet, especialmente sobre o cinema extremo japonês mais obscuro, e o risco de acabar replicando besteira é sempre grande. Há uma forte tendência de rotular ciclos inteiros como "trash" (digo e repito, detesto essa palavrinha desgastada que já não significa mais nada) e/ou cultuar apenas sua "bizarrice" aos olhos ocidentais, o que acaba criando muitos preconceitos.

Essa era a noção que eu tinha de O Horror dos Homens Deformados (Kyôfu kikei ningen: Edogawa Ranpo zenshû), de Teruo Ishii, a de que se tratava de uma mera variação de A Ilha do Dr. Moreau, baseada na obra do escritor japonês Tarō Hirai, que assinava com o pseudônimo de Edogawa Ranpo (leia em voz alta e vai entender o trocadalho do carilho ). Uma variação com alta dose de esquisitices, como bestialismo, um impossível casal de gêmeos siameses de sexos diferentes e uma infinidade de fetiches e imagens grotescas entre os "deformados" pelo "cientista louco", enfim um caso exemplar de cinema apelativo, gore, trash e de mau gosto (os adjetivos mais usados para descreve-lo em sites e blogs internet afora).

Tatsumi Hijikata tocando o terror
Depois de guardar um release do filme no HD durante anos, finalmente resolvi me aventurar a conferir. Lá pelas tantas, me aparece a famosa cena em que o "Dr. Moreau" do filme, dança pelos rochedos da ilha com o oceano rugindo às suas costas. Me inclino no sofá, embasbacado: "Peraí, mas isso é Butoh!". Termino de assistir e vou cavar um pouco mais fundo na internet, e descubro que não apenas era mesmo Butoh, como era o próprio Tatsumi Hijikata em cena!!

Nas minhas passagens pelas artes cênicas, dança-teatro e performance, tive muito contato (como amador e apreciador, bem entendido) com a dança Butoh (ou Butô) e, ainda que eu não tenha me tornado nenhum profundo conhecedor, convivo com amigos que o são, que trabalham e pesquisam Butoh a anos. Aí fiquei bastante espantado: como é que eu nunca tinha ouvido falar que o cultuado Hijikata, dito como criador do Butoh, havia atuado em filmes de horror?! Fiquei tão passado que postei uma cena do filme no meu facebook pessoal. O post repercutiu um bocado mas nenhum dos meus contatos que estudam ou tem interesse em Butoh chegou pra mim e disse: "sim, claro que eu já conhecia esse filme". Ao contrário, foi uma surpresa geral, com muita gente ficando desesperada pra baixar o dito cujo. Por outro lado, a maioria dos meus amigos que manjam de cinema extremo, horror e esquisitices em geral conheciam bem o filme, mas nunca tinham sequer imaginado que os tais "homens deformados" da história eram dançarinos de Butoh! Pra eles aquela gente esquisita pintada se contorcendo era apenas "bizarrice japonesa".


Claro que a "amostragem" dos meus contatos é restrita, mas achei o episódio bem interessante. Meio que ajuda a confirmar a importância da posição que tento (o máximo que posso) manter na arte e na vida: o exercício de mesclar universos. Penso que filmes como O Horror dos Homens Deformados (ou Blind Woman´s Curse, do mesmo diretor, que também conta com a participação de Hijikata num papel menor) acabam funcionando meio como pontos de convergência, evidenciando o quanto nós tendemos a limitar nosso pensamento em "tópicos", nos fechar em guetos. De um lado o "clã" do teatro, da performance, da dança, fascinado com o Butoh, mas que nunca passaria nem perto de um filme com fama de "trash". Do outro, o "clã" do cinema extremo, que cultua a excentricidade do filme mas não tem a menor ideia de qual é o conceito e o contexto por trás daquelas encenações aparentemente nonsense. Enquanto você se mantém afinado apenas com um dos dois grupos, fica limitado para compreender o alcance artístico da obra em sua totalidade (e aí acontecem episódios hilários, como o sujeito no Filmow puto da vida porque o filme não tinha todo o gore que sua fama afirmava ter, só um bando de malucos pintados dançando, rsss...)

Imagens de alguns dos "deformados" butoistas. 
Enquanto isso, artistas como Hijikata, se dispõem (ou simplesmente não se indispõem) a transitar descaradamente pelos universos. Lá está ele exibindo sua dança num filme produzido e distribuído num esquema exploitation (e ele não foi o único butoista a participar de filmes extremos, Akaji Maro atuou no maravilhoso "Suicide Club" e, pasmem, em Kill Bill, do Tarantino), no limite, colocando em cheque a própria compreensão que acreditamos ter sobre as fronteiras entre o exploitation e a dita arte com "A" maiúsculo. Não tem como não lembrar também agora de outro famoso destruidor de fronteiras, Alejandro Jodorowsky. Na minha experiência de cinéfilo e fã de quadrinhos, atesto que é bem difícil achar alguém que tenha familiaridade tanto com os filmes quanto com os quadrinhos do Jodorowsky. Na maioria das vezes cinéfilos mal sabem que ele escreve quadrinhos e vice-versa. O que é uma pena, pois "O Incal" ou "A Casta dos Metabarões" iluminam muita coisa de "El Topo" e "A Montanha Sagrada" e, claro, vice-versa.

Evidente que estou generalizando um pouco aqui por amor à provocação. Há muitos "feiticeiros habitando os limites das aldeias" espalhados por aí, como diria Gilles Deleuze. Mas aqueles que transitam pelos universos sabem que é meio complicado achar com quem trocar ideias sem ter que, previamente, estabelecer os tópicos que serão tratados: vamos falar de quadrinhos ou de cinema? Cinema alternativo ou popular? Quadrinhos de super heróis ou underground? Esquisitices japonesas ou dança Butoh?

Daí senti necessidade de esboçar esse post (primeiro no facebook e agora numa forma mais "fechada" aqui no blog), tentando modestamente reapresentar "O Horror dos Homens Deformados" com um pouquinho mais de contexto, ainda que eu não seja nem de longe o melhor indicado pra isso, já que - como já disse - não conheço em profundidade nem o cinema extremo japonês e nem o Butoh. Mas acho que minha posição inter-fronteiras em relação a ambos me permite ao menos confundir um pouquinho as convicções dos representantes tanto dos interessados em butoh quanto do cinema extremo bizarro.

Espero que seja suficiente para, ao menos, despertar curiosidades... e o apreço pelo limiar das fronteiras, onde feiticeiros e lobisomens habitam...


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