terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

(Re)Assistindo: Canções de Vingança de Meiko Kaji

Female Prisoner Scorpion's Trilogy AKA Joshû Sasori (1972-1973)
com Meiko Kaji, Rie Yokoyama, Yayoi Watanabe, Yôko Mihara, Akemi Negishi, Fumio Watanabe, Fudeko Tanaka, Mikio Narita

O women in prison nunca foi, nem de longe, um dos meus subgêneros favoritos do exploitation. Talvez por isso que eu tenha demorado tanto pra conferir a série Female Prisoner Scorpion, de Shunya Itō. Sim, eu sei, "mea culpa, mea maxima culpa", como se diz. Basta meia hora, já no primeiro filme, e topamos com aquela cena em que uma prisioneira furiosa se transforma, do nada, num demônio de teatro kabuki, e aí a gente se dá conta de que a saga de Sasori/Scorpion vai um pouquinho além daquilo que nos acostumamos a esperar do metiê habitual do gênero. Agora, claro que não estamos falando de um elemento sobrenatural banal, o fantástico aqui se dá bem mais em termos de forma e estilo, uma pegada quase expressionista que busca adensar e intensificar os subtextos propostos sob o prisma do grotesco, da máscara monstruosa e, no limite, incognoscível. Pretensão demais? Talvez, afinal não deixa de ser também um típico representante do gênero, com doses generosas de fetichismo meio que pondo em xeque (ou, vá lá, contrabalanceando) o conceito geral de uma prisão feminina como metáfora (até bem óbvia) do patriarcado. Mas o fato é que funciona! Mais que isso, tem um profundo impacto num nível sensorial e estético. E mesmo em termos temáticos a série vai se sofisticando, certas coisas que me incomodaram bastante no primeiro filme, como a excessiva animosidade de absolutamente todas as mulheres em relação a Scorpion, vão sendo "problematizadas" conforme as detentas tomam consciência do processo de "animalização" a que foram sendo submetidas e, ainda que de forma torta e reticente, acabam se reconhecendo como aliadas ao invés de inimigas, especialmente no segundo filme, disparado o melhor e mais insano da trilogia (e, de fato, é uma trilogia, previamente planejada pra fechar na terceira parte, ainda que haja mais filmes com outros diretores, o quarto até mantendo Kaji como protagonista). Somando tudo, a série mais que justifica seu status cult dentre os pinky violence... e Meiko Kaji é foda DEMAIS!
com Meiko Kaji, Hoki Tokuda, Makoto Satô, Hideo Sunazuka, Shirô Ôtsuji

E Meiko Kaji SEMPRE foi foda! No mínimo desde esse Blind Woman's Curse, onde encarnou (acredito que) pela primeira vez o tipo de papel que a tornaria mais famosa: a guerreira solitária e implacável em busca de vingança, mais mortífera do que qualquer homem. Aqui nem tão solitária na real, já que é nada mais nada menos que a líder de um clã yakuza que luta unido (e bem unido) por uma tatuagem de dragão que atravessa as costas de seus membros, uma imagem arrebatadora já na primeira sequencia de luta, com a formação da falange de combate ainda nos créditos iniciais. O tipo de cena que é preciso ver pra crer. Daí em diante é puro delírio. O filme é o desfecho de uma saga yakuza que inclui mais duas partes, às quais não tive acesso, então pode ser que alguns aspectos da trama tenham me passado batido, mas algo me diz que o roteiro não seria menos insano se eu tivesse mais contexto. Sendo honesto, nem corri tanto assim atrás dos anteriores, afinal não tinham Kaji, nem o demente do Tatsumi Hijikata como o corcunda dançarino Ushimatsu. Sim, O Hijikata! Pai do Butoh Dance! Que, na época, tinha acabado de fazer um Dr. Moreau butoista para o mesmo Teruo Ishii em Horror of the Malformed Men. É pouco? Ok, também tem fantasmas e demônios kabuki (se reais ou simbólicos fica a seu critério) e uma gélida Hoki Tokuda como a guerreira cega Aiko, inimiga jurada de Kaji. Aliás, por mais bizarro que o desenvolvimento do enredo seja, não estranhe se, no fim, tudo lhe parecer estranhamente familiar. A não ser que nunca tenha visto Kill Bill. Se viu, agora sim vai saber de onde veio aquele deslumbrante duelo final no jardim de inverno sob a neve, aquele que você jurava que era de Lady Snowblood (bom, também é😅). Se isso aumenta ou diminui seu respeito pelo velho Tarantino fica também a seu critério, mas é sempre bom lembrar que foi graças a ele que Kaji pôde retomar sua carreira de cantora em plenos anos 2000, sem contar sua redescoberta, por toda uma nova geração, como uma das maiores heroínas da história do cinema mundial.


Lady Snowblood AKA Shurayuki Hime (1973-1974)
com Meiko Kaji, Toshio Kurosawa, Masaaki Daimon, Akemi Negishi, Shin Kishida

Era um clichê na crítica dos anos 2000 repetir que "a carnificina nunca fora tão bela quanto em Kill Bill". E, de fato, era bela, mas pra que isso fosse possível, antes teve que haver Lady Snowblood. E por mais que eu ame a obra-prima do tio Tarantino, sua beleza não rasga a alma como no filme de Toshiya Fujita. A figura de Meiko Kaji deslizando pela neve em seu kimono de borboleta manchado de sangue é daquelas imagens que parecem transcender enredo e narrativa e atingir algum tipo de ressonância quase mítica, como o carrinho de bebê de Ittō Ogami em Lobo Solitário, outra criação icônica de Kazuo Koike. É fascinante como Shurayuki já surge em cena como uma espécie de culminação de todas as heroínas que Kaji foi esboçando e refinando no decorrer da carreira, das bad girls de Stray Cat Rock até a vingadora silenciosa de Female Prisoner Scorpion, todas versões preliminares para essa estranha "criança do submundo", demônio em forma de mulher, nascida apenas para a vingança. E mesmo em toda essa envergadura "maior do que a vida", ainda assim, de todas, é a sua heroína mais humana. O sangue pode esguichar caricato e hipercolorido, as proezas podem ser fantásticas e sobre-humanas, mas a dor nos olhos de Kaji nunca deixa de ser real. Bem como a crueza com que sua trajetória vai sendo costurada com o processo de decadência das tradições samurais do período Edo (por mais questionáveis que fossem) em meio à crescente fascistização de um Japão que se rendia cada vez mais à lógica do imperialismo ocidental. Não é a toa que o último ato de vingança se dá justamente num simulacro de baile de máscaras, cheio de novos ricos se enrolando no inglês para bajular a burguesia europeia, e o segundo filme (que já não é mais baseado no mangá) se constitui, acima de tudo, como um thriller político, bem à cara dos anos 70. No limite, é uma história sobre o fim de uma era, e um testamento para todo o gênero chambara, que talvez não pudesse mesmo soar de outra forma senão um grito... e o trincar da neve sob um punho que se fecha.🥀


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