quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Um Motivo para Assistir a "Versão do Produtor" de Halloween 6

Depois de muitos e muitos anos, finalmente as circunstâncias (e minha paciência) se harmonizaram pra que eu tivesse chance de conferir a tal "versão do produtor" do famigerado Halloween 6 - The Curse of Michael Myers (agora disponível com qualidade HD nos melhores sites de torrent).

"Versão do produtor"?! WTF? Pois é, bizarro, não? Acredito que seja o único caso em que a versão estendida de um filme é um producer´s cut, não um director´s cut. Afinal, normalmente são os produtores que fazem lambança nos filmes por razões mercenárias e os diretores usam os director´s cut para ter a chance de restaurar suas obras mutiladas (exceto nos casos picaretas, claro). Mas Halloween 6 foi uma produção tão absurdamente tumultuada, tão cheia de tretas internas que acabou gerando não um, mas dois filmes-frankenstein. É uma longa história que pode ser encontrada com mais detalhes em sites gringos, mas por agora basta dizer que a "versão do produtor" (no caso Moustapha Akkad, "dono" da franquia até sua morte em 2005) tem fama de ser infinitamente melhor do que a catastrófica versão de cinema, que quase enterrou de vez a saga do primeiro grande psicopata imortal do cinema, Michael Myers.

Halloween 6 era, de fato, indefensável, por mais boa vontade que o espectador tivesse. E olha que eu tenho um fraco por filmes que se convenciona tachar como ruins a priori (até curto o Halloween 5, que a maioria dos fãs odeia), mas nesse caso não tem como: o filme é uma zona sem pé de cabeça na sua tentativa bizarra de transformar um simples slasher numa rocambolesca trama de conspiração mística druida como forma de "explicar" a imortalidade de Michael, algo que obviamente nunca precisou de explicação. Parece que o roteirista, Daniel Farrands, até tinha boas intenções, era mega fã da série e meio que tentou costurar todos os elementos disparatados que foram sendo introduzidos pelo caminho (incluindo, me parece, até as doideiras druidas de Halloween 3, que a princípio nada tinha a ver com o resto da série) naquilo que, pretensamente, seria uma conclusão épica. Farrands alegou que seu roteiro sequer chegou a ser filmado na íntegra, mas desconfio que não teria feito tanta diferença. Na maioria das vezes, fãs apenas acham que sabem o que é melhor para seus objetos de culto.

E, afinal, o producer´s cut é mesmo melhor? Não, é tão ruim quanto a versão dos cinemas... mas é diferente. Na verdade não se trata de uma simples versão estendida ou mesmo uma remontagem de cenas: a última meia hora de filme é completamente diferente nas duas versões. O problema é que nenhuma delas funciona, nem como filme independente e muito menos como um pretenso desfecho de uma saga. A producer´s cut ao menos é mais bem amarrada e a trama faz mais sentido do que a versão de cinema, dá pra sacar aonde queriam chegar, mas continua senso insatisfatória, a despeito da fama quase mítica que foi ganhando com o tempo.

Mas então qual é o tal motivo para assistir essa versão do produtor? Simples: Donald Pleasence.

Donald Pleasence enchendo o bucho
em Dracula (1979)
Para o bem ou para o mal, Halloween 6 acabou sendo o último filme da longa carreira de Donald Pleasence, um dos ícones do cinema fantástico mundial, embora não tão conhecido ou lembrado quanto Vincent Price, Peter Cushing, Christopher Lee, etc. E de todos os pecados que a versão de cinema comete, na minha opinião o maior de todos foi ter reduzido ao mínimo todas as sequencias com a participação do veterano ator. Com mais de 200 títulos na carreira (o que rivaliza até com o tio Lee), Pleasence meio que se especializou em personagens excêntricos, ligeiramente fora da caixinha, sempre um tanto over e, por isso mesmo, marcantes. Não tendo a aparência exigida para ser galã ou estrela, essa escolha profissional acabou se revelando bem mais interessante do que virar o eterno coadjuvante médico, político, ou pai de alguém. Não que não fizesse papéis desse tipo, mas quando fazia era um Dr. Seward que passava o filme inteiro hilariamente comendo alguma coisa, como no Dracula de 1979 (reza a lenda que fez isso pra complicar o trabalho do continuísta e assim tornar mais difícil que suas cenas fossem cortadas). Ou um presidente dos EUA que inesperadamente metralha o vilão e salva o herói, em Fuga de Nova York. Ou então, se fosse pra ser pai de alguém, por que não de uma bruxa, como em Vozes do Além? Se a bruxa, ainda por cima, for a sua filha na vida real, melhor ainda!

Donald e Angela Pleasence, pai e filha em Vozes do Além.
Cá entre nós, ela também era ótima.
Esse era Donald Pleasence, cuja presença em qualquer filme sempre me fez abrir um sorrisão de orelha a orelha, como voltou a acontecer recentemente quando o reencontrei num dos episódios da série Agatha Christie´s Miss Marple, contracenando com a maravilhosa Joan Hickson. E quem não se lembra do primeiro e mais marcante Ernst Blofeld, em Com 007 Só se Vive Duas Vezes? Cicatriz no olho e gatinho no colo, a imagem mais arquetípica de vilão megalomaníaco veio justamente de sua performance! Mas Pleasence podia ser assustadoramente sério quando era necessário, como em sua fantástica composição de William Hare, da folclórica dupla de ladrões de cadáveres da Inglaterra vitoriana, Burke and Hare, no arrasador The Flesh and the Fiends, de 1960.

"...descobri que por trás daqueles olhos negros
havia apenas... o mal." Halloween (1978)
Mas pra quem cresceu com o cinema de horror dos anos 80 a figura do ator se tornou indissociável do implacável e assombrado Dr. Sam Loomis da franquia Halloween. Pleasence, meio que sem querer, teve a oportunidade de criar uma versão moderna do Dr. Van Helsing para um novo tipo de monstro que dominaria o cinema de horror da década de 80, desbancando os Dráculas e Frankesnteins do passado: o psicopata sobrenatural dos slasher movies. No clássico original de John Carpenter, Loomis era a voz que dava peso à persona sem rosto de Michael Myers, aquele que reconhecia no ex-paciente a encarnação do mal absoluto e tentava, de sua posição de autoridade como psicólogo, traduzir essa epifania para os demais personagens (e para o espectador). Era através de seus discursos obsessivos (que o veterano ator conseguia tornar críveis, por mais absurdos que fossem) que aprendíamos a temer a silhueta sinistra de Michael espreitando as babysitters, não apenas da forma concreta e racional com que temeríamos um simples assassino, mas também da forma abstrata e transcendente com que tememos demônios e fantasmas. Em suma, se Donald Pleasence dizia que Michael Myers era o bicho-papão, então ele era! Fim de papo!

Muito amor no coração com
Dick Warlock e Jamie Lee Curtis
no set de Halloween II (1981)
A importância do ator para a franquia foi tanta que o Dr. Loomis acabou, na prática, se tornando tão "imortal" quando o próprio Michael. Quando Halloween 3 fracassou em convencer a audiência de que era viável continuar a série com histórias e personagens diferentes a cada dia das bruxas, Moustapha Akkad não hesitou em trazer Loomis de volta dos mortos em Halloween 4, depois de ter sido literalmente explodido no segundo filme! Por mais absurdo que fosse ver Pleasence surgir em cena com apenas algumas cicatrizes no rosto, uma bengala e nem sequer uma tentativa de explicação de como tal milagre foi possível, o fato é que ninguém se importou muito com isso, tal era o prazer de vê-lo em cena novamente. Daquele momento em diante não havia dúvidas de quem era realmente o protagonista da série, ainda mais com Jamie Lee Curtis fora da jogada (não por acaso ela foi trazida de volta logo depois da morte do ator). Talvez não fosse exatamente uma das formas mais dignas de se tornar um protagonista, mas o fato é que se Halloween se destacava entre as franquias intermináveis do período era justamente porque podia contar com o velho e bom Dr. Loomis filme após filme e isso era muito mais do que Sexta Feira 13 tinha a oferecer.

Com a fofa da Danielle Harris no set de Halloween 5.


E é por tudo isso que quando revi o malfadado Halloween 6 na sua "versão do produtor" foi impossível não ficar surpreso e encantado. Por mais que o filme continue ruim, Donald Pleasence ganha muito mais tempo em tela, com versões mais longas e mais desenvoltas de quase todas as cenas que eu já conhecia, o que permite uma visão bem mais clara e mais abrangente de como foi, de fato, a sua última performance em tela... e isso é um verdadeiro presente! Já de cara é a voz do Dr. Loomis que ouvimos na narração em off que rola durante os créditos de abertura, o que faz infinitamente mais sentido (tanto para o filme em si quanto para a série como um todo) do que o personagem Tommy Doyle na versão de cinema. Reza a lenda que o diretor Joe Chappelle encolheu as aparições de Pleasence porque o achava enfadonho, o que demonstra os níveis abismais de mediocridade que o cinema de gênero nos anos 90 conseguia atingir nos seus piores momentos (pensando bem... também ajuda a entender porque, nesse caso, a versão melhorzinha é a "do produtor").

Chega de tanta sofrência...
Chega a ser comovente reencontramos Loomis confortavelmente instalado numa casinha bem aconchegante, anos depois dos acontecimentos do filme anterior, tirando um sarro do locutor da rádio que comenta sobre sua suposta morte. E é fascinante constatar o quanto o velho doutor parece diferente. Mesmo que visivelmente frágil, quase encolhido, como costuma acontecer com pessoas muito idosas, ele parece mais leve, mais bem humorado, até meio bobo... um simpático e sorridente tio bonachão. É um contraste gigante com o vingador obcecado que nos acostumamos a esperar, o demente furioso que chegou a usar a pequena Jamie Lloyd como isca para atrair Michael para uma armadilha, literalmente segurando uma criança aterrorizada de 12 anos diante de um monstro sanguinário enquanto berrava "venha pegar a sua garotinha!" (um dos momentos mais espetaculares da carreira do ator e, se querem saber, um dos vários motivos de, apesar dos pesares, eu realmente gostar de Halloween 5).

O que vemos nas cenas estendidas é um Loomis que parece ter feito as pazes com seus demônios e se permitido ocupar de outras coisas na vida além de ficar eternamente esperando por um possível retorno de Michael, incluindo uma operação de enxerto de pele que eliminou as velhas cicatrizes do rosto, um detalhe inexplicado na versão de cinema e que, imagino, foi feito mais para poupar o idoso ator de se submeter novamente a incômodas sessões de maquiagem. Mesmo quando surgem as evidências de que Michael está de volta, Loomis mantém uma serenidade até então inédita na série, mas que faz pleno sentido se considerarmos a trajetória de um personagem no crepúsculo de uma vida inteira de estudos sobre o oculto e a natureza do mal.

Uma performance mais serena,
mesmo nas cenas mais tensas.
Mas para além de questões de construção de personagem (que, no fim das contas, o filme nem sequer sabe aproveitar) o que realmente fica é algo que extrapola a ficção e atinge aquele ponto nebuloso em que a arte e a vida se confundem. A sensação de testemunharmos os últimos dias de vida (Pleasence morreria ainda durante as filmagens) de um ator em paz consigo mesmo e com o personagem que, para o bem ou para o mal, sempre será o mais lembrado de toda a sua carreira. É como se ele tivesse compreendido (bem mais do que limitados produtores, roteiristas e diretores) que, àquela altura do campeonato, era hora do velho Dr. Sam Loomis alcançar alguma forma de redenção. E já que a série sequer lhe permitiu a dignidade de uma morte heroica, arrastando-o indefinidamente de um roteiro medíocre pra outro, então pra que esquentar a cabeça? O lance era meio que sequer "atuar", apenas deixar que os vazios dramatúrgicos da trama e do personagem fossem preenchidos pela presença de espírito, a bonachice, e até uma certa melancolia, do próprio Donald Pleasence, da forma como sempre foi descrito e lembrado pelos inúmeros colegas de profissão. É ele que vemos em tela nessas cenas estendidas... sereno e em paz. Dane-se o final indigno e desrespeitoso reservado ao personagem mesmo nessa versão. Nossa prerrogativa como público é ter o poder de construir nossas próprias versões de qualquer obra artística, para além de quaisquer director´s ou producer´s cuts, nos concentrando nas poucas e belas cenas do bom doutor em sua casa, nos recebendo para um brinde e conversando sobre os velhos tempos. Afinal há tantas histórias para contar.

Christopher Lee costumava dizer que tinha feito muitos filmes ruins na sua longa carreira, "mas o que importa é que eu estava ótimo em todos eles". Donald Pleasence teria brindado a isso. Cheers, my dear doctor!


6 comentários:

  1. Ainda não vi Halloween, mas vi o Donald em THX 1138 e ele tem muita presença: Donald "Presença" :D. No mais, eu não imaginava que a série de filmes tinha chegado tão longe (sem falar nas refilmagens, reboots e coisa que o valha mais recentes)!

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    1. Chegou super longe... oito filmes oficiais, depois a refilmagem (que me fez odiar Rob Zombie até a última geração), a continuação da refilmagem (que jamais verei) e agora John Carpenter e Jamie Lee Curtis estão planejando um novo filme que só leva em consideração o clássico de 78. Mas claro que só escrevi esse post pra falar do Donald "Presença" mesmo, ele era o máximo e merece ser mais lembrado... e não só por Halloween. ;)

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  2. Halloween é uma salada que todos amam comer, seja azeda no 3, amarga no 4, 5, e intragavel no 6 mas os dois filmes de Robie Zombie são muito bem explicados e fazem muito mais sentido. Agora vem este de 2018, vou ver pq sou fã da série mas já sei que vai ser lixo.

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  3. Alguém tem link do torrent da versão do produtor?

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