Artigo originalmente publicado no site Universo HQ em 2007, revisado e atualizado em 2018.
Já foi dito que para estar na moda não é necessário ficar obsessivamente antenado às tendências dominantes, basta manter os seus gostos pessoais, interesses e convicções, que, em algum momento, a moda acabará por alcançá-lo. 😉
Drácula - A Sombra da Noite, de Ataíde Braz e Neide Harue, foi uma minissérie de cinco edições, publicada pela editora Nova Sampa, que recontava a imortal saga do príncipe dos vampiros sob um prisma romântico deliciosamente sensual e com desenhos com forte influência do estilo japonês. Note que estamos falando de dois pilares da cultura pop: vampirismo e mangá! Qualquer HQ combinando ambos deveria ter enormes chances de sucesso comercial, mesmo que fosse mal produzida e sem maiores ambições além do lucro fácil, o que não é nem de longe o caso aqui. Entretanto, no início da pesquisa para a versão original desse artigo, em meados de 2007, uma busca no Google não revelava mais do que uma dúzia de links, a maioria de sebos virtuais anunciando a edição encadernada publicada posteriormente. Mesmo hoje em dia (quando esse artigo foi revisado e atualizado) a série e seus autores continuam não sendo tão lembrados ou citados quanto outros materiais do mesmo período, seja por críticos, pesquisadores ou fãs nostálgicos. Virou uma espécie de nota de rodapé na história das HQs nacionais. Seu pecado: ter sido lançada em 1985, muito antes dos mangás entrarem na moda por aqui e justamente num dos mais acentuados períodos de crise do gênero vampírico na cultura pop em geral.
A capa que me atraiu numa pilha de gibis usados a venda em algum momento do final dos anos 80. |
Quanto ao mangá, só começaria a despertar algum interesse real por aqui dos anos 90 em diante, com a publicação do best-seller Akira e algumas tímidas tentativas de lançamento de cults como Lobo Solitário e Crying Freeman. Falar em "mangá nacional", algo que nas décadas seguintes se tornaria tão corriqueiro, soava quase absurdo naquele contexto, e nem era essa a intenção da desenhista Neide Harue, esposa de Ataíde Braz. As características orientais eram apenas parte de seu estilo pessoal, que chegou a ser criticado, na época, por ser semelhante demais ao mangá e não ter um caráter mais "brasileiro". Quem poderia prever que, pouco mais de uma década depois, Holy Avenger se tornaria um dos quadrinhos nacionais mais vendidos de todos os tempos.
O primeiro encontro do orgulhoso Drácula com a ferina Mina Murray. |
Mas se o visual japonês foi apenas incidental, o mesmo não se pode dizer da tentativa de reformulação do paradigma então vigente para histórias de vampiro empreendido por Ataíde Braz. Totalmente na contramão das tendências da época, o autor apresentou aos leitores (e editores) um vampiro com aparência jovem, bonito, elegante, de temperamento intempestivo e audacioso, que questionava a imortalidade e sofria com a solidão melancólica de séculos de uma existência vazia, ainda que orgulhoso de sua linhagem nobre e com energia suficiente para continuar sua busca por vitalidade e amor. Bem diferente (exceto talvez pelos gostos de vestuário) do Drácula a la Gene Colan que os quadrinhos da Bloch continuavam emulando mesmo depois da editora perder os direitos de publicação do material da Marvel. A influência mais direta de Braz aqui é certamente o remake da Universal de 1979, com Frank Langella no papel do conde e, talvez indiretamente, a versão de Jack Palance de 74 (que também influenciou A Tumba de Drácula), mas a completa transformação do "monstro" em "herói" no decorrer das cinco edições é muito mais clara e intencional do que no ambíguo filme de John Badham.
Seguindo mais de perto o livro original do que a maioria das adaptações da época. |
Mina Murray. |
Mas é Mina Murray que detém o coração da HQ. Com seus cabelos curtos e atitudes pouco apropriadas para uma mulher de respeito no século XIX, a impulsiva e geniosa Mina de Braz e Harue encanta os leitores tanto quanto ao orgulhoso conde. A dinâmica do casal segue a tradição clássica de amor/ódio estilo …E o Vento Levou, com duelos verbais ferinos temperados com astutas provocações sensuais, culminando no tórrido desfecho da edição # 3 (um dos melhores momentos da série), em que a moça se entrega à paixão pelo conde e aceita seu destino como uma nova sombra da noite. Uma cena inteiramente diferente do estupro simbólico cometido no livro, quando Drácula obriga a moça a beber o sangue de uma ferida em seu peito.
Vampiros podem viver uns dos outros? Não numa abordagem clássica, mas e numa romântica? |
Não seria exagero afirmar que a série foi (ou ao menos tentou ser) precursora de um novo paradigma para o gênero. No decorrer das edições, Braz arrisca lançar mão de uma série de idéias que, posteriormente, se tornariam muito populares. Duas delas merecem ser destacadas aqui:
Vampiros de carne, osso e sangue, sem sombra de dúvida. |
2) Há uma clara tentativa de desvincular o vampirismo da religião. Na série, Drácula não renunciou a Deus, não fez pacto com o demônio, nem mesmo foi o primeiro dos vampiros. O conde desconhece as origens da maldição, tudo o que sabe é que foi transformado pela traiçoeira Maria, uma misteriosa vampira estrábica (!) responsável por uma conspiração para tomar seu reinado e seu coração. Com a morte dela, Drácula teve que aprender sozinho os mistérios do vampirismo, acabando por atingir um nível de poder considerável com o passar dos séculos.
A misteriosa Maria. |
O início hiper gótico, antes do romantismo e da abordagem de aventura romântica tomarem conta. |
"É preciso decepar sua cabeça". "Desnecessário, quem violaria seu túmulo?". Hmmm... |
Ainda assim, os custos e as dificuldades para lançar cada número deixavam claro que a coisa não poderia prosseguir por muito tempo. E Drácula acabou sendo encurralado por seus inimigos (de maneira similar ao livro de Stoker), vindo a morrer juntamente com sua amada Mina, no desfecho da edição # 5, frustrando as esperanças de muit@s leitor@s que escreviam para a redação pedindo um "final feliz".
Uma maravilhosa promessa tristemente não cumprida. |
Mais seguros depois da boa recepção da série original, os autores criaram uma história ainda mais envolvente e bem executada, com ganchos suficientes para várias edições, agora sem a obrigação de seguir a trama do livro. Entre os novos personagens estava a fogosa francesinha Anne, criada sob medida para virar a cabeça do mulherengo conde, e o jovem Holt, um então praticamente inédito personagem homossexual não estereotipado com uma visível queda pelo vampiro, uma ousadia rara para qualquer mídia na época, especialmente o conservador mercado de quadrinhos brasileiro.
Fazia parte dos planos que a nova série girasse em torno da rede de desejos formada entre Drácula, Anne, Holt e as ressuscitadas Maria e Mina (um plot que também teria antecipado os jogos de sedução bissexuais dos vampiros de Anne Rice) e culminaria na vinda de Drácula para o Brasil!
Alguém sabe holandês? |
Os fãs brasileiros nunca puderam saber como a história terminaria, tendo que se contentar apenas com tímidas tentativas de reedição da série original. No finzinho dos anos 80, a Nova Sampa republicou os dois primeiros números, mas mesmo com belas novas capas de Neide Harue (com um Drácula claramente inspirado no ator Christopher Lambert!) aparentemente as vendas não compensaram uma continuidade.
Tempos depois, chegou às bancas uma edição encadernada contendo a série completa (menos Um Vampiro no Ragtime). Na verdade era um encalhe com páginas borradas que manchavam as mãos de tinta, ainda assim, esse volume continua sendo a melhor chance para os interessados em adquirir a obra, pois aparece ocasionalmente em sebos virtuais. Já as edições originais são tão raras que nem mesmo os autores têm uma cópia. Até bem pouco tempo sequer havia scans disponíveis na internet.
Acho que Neide Harue tinha um fraco pelo Christopher Lambert. |
A estilização do mangá, que se tornaria tão corriqueira no Brasil apenas alguns anos depois. |
* Agradecimentos especiais a Ataíde Braz, pela disposição em esclarecer as dúvidas tanto do autor deste artigo quanto do garotinho que um dia encontrou o número 5 de "Drácula - A Sombra da Noite" numa banca de gibis usados em São Paulo e passou anos tentando descobrir de onde aquilo tinha vindo. E também a Neide Harue, por ter estimulado os sonhos erótico/românticos desse mesmo menino com suas mulheres espevitadas de rostinhos redondos. 💓
Conheci Dracula A Sombra da Noite na época que foram publicados. Consegui completar a coleção do 1 ao 5. Mais o único número do Retorno de Drácula - Um Vampiro no Ragtime. Me apaixonei pela estória, pelos desenhos e pelo vampiro charmoso. Porém, emprestei a coleção a um amigo e o número 4 nunca mais voltou porque ele perdeu. Fiquei muito triste! Mesmo depois de anos não me conformava com minha coleção incompleta. As revistas que restaram guardei a 7 chaves. Somente hoje procurei na internet uma forma de comprar o n°4. Até agora não encontrei. Mas encontrei este texto que li e adorei. Em alguns trechos me fizeram lembrar exatamente os mesmos sentimentos que tive na época em que conheci Dracula A Sombra da Noite de Ataide Braz e Neide Harue. Se tiver uma dica para eu conseguir o n°4 ficarei muito feliz. Não precisa ser original, pode ser cópia. Um grande abraço!
ResponderExcluirNão querendo desanimar, mas vai ser bem difícil encontrar essa edição na internet. Pra você ter uma ideia, eu mesmo não tenho a coleção original, nunca sequer tive as revistas em mãos, só conheço as capas porque o autor me enviou as imagens. O único número que eu tenho é o 5. Os números 1 e 2 eu tenho a reedição, mas só li a série completa quando comprei a edição encadernada. Eu sugiro que você tente achar o encadernado, talvez no Estante Virtual, acho mais provável de aparecer pra vender. Na época que eu escrevi esse artigo, o Ataíde me disse que nem ele tinha cópias das edições originais, mas você pode tentar entrar em contato com ele também: http://ataidebraz.wordpress.com/
ExcluirDesculpe não poder ajudar mais. É o grande problema de emprestar quadrinhos. Até Shakespeare já dizia: "Nunca empreste ou peça emprestado, porque quem empresta perde o objeto e o amigo e aquilo que é emprestado nunca volta melhor". =)
Pior fui eu, tive a coleção antiga completa, depois comprei o volume único e hoje só tenho o download das revistas.
ExcluirTexto excelente
ResponderExcluirApesar dos anos, Drácula ainda é lembrado por muitos um personagem, especialmente como um clássico do gênero horror. Eu amo tudo o que tem a ver com isso e agora estou vendo Penny Dreadfull Temporada 2 disfrutado muito de um remake do Drácula, eu convido você para ver o show e julgar por si mesmo o adapatción de Drácula neste proposta TV
ResponderExcluirLi uma das revistas quando era adolescente , 14/15 anos , não tenho certeza, mas me apaixonei pela estória .
ResponderExcluirSe alguém tiveres revistas em pdf ficaria muito feliz em poder lê-las novamente !
Abraços
https://downloaddehqs.blogspot.com/2019/11/dracula-sombra-da-noite-1985-1987.html baixei os 5 volumes neste site.
ExcluirComprei a versão encadernada lá pelos idos de 90, em plena praça da Sé, aqui em SP. Amei a história desde a primeira vez que a li. Este hq sempre foi meu xodó em meio a meus Conans, Sandman do Neil Gaiman, Manara entre outros. E que bom saber que foi escrita antes do Dracula de Bram Stoker! Parabéns por escrever um texto tão bom sobre uma hq tão bacana feitas por um pernambucano e desenhada por uma mulher. �� Valeu!! E que bom revisitar o passado em um tempo onde tudo é delivery e a arte parece que só serve a nostálgicos.
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