sexta-feira, 3 de maio de 2024

Quem tem medo de William Shakespeare?


Reza a lenda que dá pra achar respostas para todas as perguntas em Shakespeare (há quem diga que é no Poderoso Chefão, mas eu tomaria cuidado com pessoas assim😜).

Pode ser exagero, mas creio que dá pra afirmar que há mesmo algo para (quase) todos os gostos na obra shakespeariana. Inclusive o horror. Eu iria até mais longe ao apontar que os pressupostos do cinema de horror parecem exercer um fascínio especial nos cineastas que se aventuram a adaptar o bardo para as telas. Boa parte das versões consideradas clássicas não ficariam deslocadas num box de grandes obras do terror gótico, e não me parece por acaso que uma das peças mais filmadas de toda a história do cinema seja justamente a aterradora Macbeth, a despeito (ou justamente por conta) de sua fama de "amaldiçoada" e de "dar azar".

Tem coisa mais gótica do que
romance no cemitério?😉
Romeo and Juliet (1968)
de Franco Zeffirelli
Mas mesmo a insuspeita Romeo & Julieta pode pegar a audiência no pulo entre um suspiro apaixonado e outro. Afinal, vocês hão de convir que seu necrofílico desfecho poderia ser tranquilamente apreciado como um suprassumo da melancolia mórbida, e ninguém parece ter sacado (e demonstrado) isso com mais clareza do que o Franco Zeffirelli na sua obra-prima de 1968.

E nem digo isso (apenas) por conta da deslumbrante catacumba na qual os desafortunados amantes celebram seu derradeiro voto, mas pelo inesperado destaque que Zeffirelli dá a uma cena que a maioria das outras versões simplesmente corta ou joga na narrativa de forma mais funcional e an passant. O inesquecível solilóquio do Mercutio de John McEnery crava uma nota funesta (e aparentemente dissonante) ao tipo de história que a audiência, até então, imagina estar assistindo. Tipo aquele momento da noite em que o palhaço da turma se revela uma alma profunda e atormentada e, de uma hora pra outra, "a festa vira um velório".

Na invocação desesperada à uma Rainha Mab que galopa os sonhos febris dos homens à noite e pressiona os ventres das mulheres para que melhor aprendam a tolerar o coito, muita gente se dá conta (talvez pela primeira vez) do quanto a obra de William Shakespeare pode vir a se tornar macabra. E, com "uma prece ou duas", vira-se na cama para pegar novamente o livro e conferir que outros pesadelos o bardo tem a oferecer.


Na real, associar Shakespeare ao horror não deveria nem causar estranhamento. Suas tragédias são cheias de fantasmas, bruxas, pressentimentos funestos e outras esquisitices que críticos mais sensatos decerto não deixariam de classificar como simbolismos, metáforas ou artifícios de linguagem, enquanto que nós, fãs do gênero, simplesmente daríamos de ombros e diríamos: "Ué? São... e daí?"

Laurence Olivier em Hamlet (1948),
quase um Peter Cushing, improvisando cruzes com
o que tiver a mão (aliás, ele está no filme🤗).
De fato, especular se o fantasma do Rei Hamlet existe ou se não passa de um delírio da cabeça do príncipe não é tão diferente dos intermináveis debates em torno de A Volta do Parafuso. Ao fim e ao cabo, "tanto faz". Hamlet não deixa de ser tão "história de fantasma" quanto, digamos, O Morro dos Ventos Uivantes, que também tinha um fantasma que assombrava (literalmente) toda a narrativa, ainda que só "apareça" uma única vez.

E Laurence Olivier devia pensar mais ou menos assim, ou não teria optado por abrir a sua celebradíssima adaptação de 1948 como um terror gótico sem tirar nem pôr. Está tudo lá: o castelo sinistro com suas muralhas cinzentas cobertas pela névoa, os soldados que murmuram histórias sobre o rei morto retornando do túmulo a cada anoitecer, a forma como o príncipe carrega a espada à sua frente tal qual uma cruz, e a aparição em si, uma das mais aterradoras da história do cinema, rivalizada apenas por sua equivalente na versão soviética de 1964, dirigida pelo grande mestre russo Grigoriy Kozintsev.

Não, não é uma adaptação de O Castelo de Otranto,
é o fantasma do rei no Hamlet (1964) de Grigori Kozintsev.

É fato que nem todas as versões de Hamlet (talvez sequer a maioria) carregam tanto assim as tintas nos elementos de horror, mas me parece significativo que justamente essas duas, por tanto tempo consideradas como "definitivas" (ao menos até Kenneth Branagh roubar a cena em 1996) não tenha rolado o menor pudor em se abraçar o gênero. Nada mais apropriado, eu diria, para uma peça que tem nos "humores sombrios" a sua principal razão de ser e onde o fascínio e a quase compulsão pela morte motivam dois dos maiores solilóquios das letras teatrais, o "to be or not to be" e a arrebatadora cena da caveira de Yorick.

Se tem uma coisa que eu gosto no
expressionismo gótico é a sutileza.😅
Macbeth (1948) de Orson Welles.
Curiosamente, no mesmo ano de 1948, Orson Welles lançou uma versão ainda mais gótica de Macbeth e, como veremos a seguir, essa nem acabaria sendo a sua contribuição mais inusitada para esse histórico macabro do bardo para as telas.

Eu costumo dizer que há dois tipos de adaptações de Shakespeare para o cinema: aquelas que funcionam direitinho para se conhecer na íntegra o enredo das peças, como a versão de 2010 de A Tempestade, da Julie Taymor; e aquelas que tomam o texto apenas como um ponto de partida para as mais ousadas experiências formais e dramatúrgicas, como a transcendental Prospero's Books (1991) de Peter Greenaway, que indiscutivelmente é superior, enquanto obra autônoma, mas nada recomendável pra quem não tenha, no mínimo, dado uma lida na peça.

Suzanne Cloutier, começando a se dar conta
de estar perdida no labirinto do minotauro, em
The Tragedy of Othello (1951) de Orson Welles.
The Tragedy of Othello: The Moor of Venice, de 1951, pertence, com certeza, ao segundo tipo. Orson Welles faz aqui a proeza de entregar o que acredito ser o mais curto dos filmes baseados na obra do bardo, apenas 90 minutos. Boa parte do texto ficou de fora, o que compromete bastante a performance do Iago de Micheál Mac Liammóir.

Não que seja culpa do Welles, a produção foi daquelas complicadas em que tudo parece sair dos eixos nos bastidores, mas o fato é que fica meio difícil seguir o crescente de intriga e manipulação venenosa com que o mais nojento dos vilões shakespearianos conduz (o nada brilhante) Othello a assassinar o grande amor da sua vida.

Todavia, a encenação e a direção de arte são tão arrebatadoras que quaisquer problemas narrativos vão rapidamente ficando em segundo plano. Welles transforma a ambientação do castelo num pesadelo gótico que devora os personagens e evoca todo o tormento psicológico das partes que ficaram faltando. Câmaras descomunais fotografadas num preto e branco chapado e opressivo, no qual os pontos de fuga sempre parecem se perder nas profundezas de algum corredor interminável.

Orson Welles, de black face (pois é, anos 50),
espreitando Suzanne Cloutier em
The Tragedy of Othello (1951)
expressionismo já havia tido um papel significativo na adaptação da Macbeth de 1948, mas aqui Welles atinge outro patamar. Nunca o mouro fora retratado de forma tão aterradora. Como um minotauro, um avatar da posse e do ciúme, espreitando a Desdemona de Suzanne Cloutier por um labirinto de pedras e sombras. Um legítimo horror gótico shakespeariano em tudo aquilo que (nos) importa.🥰 Só recomendo ver primeiro a versão de 95 com o Laurence Fishburne para conhecer melhor a história, e aí se deixar perder no expressionismo gótico trevoso do Sr. Welles.😉

Mas claro que, trevoso por trevoso, nada se compara ao Macbeth no que se refere a pinçar elementos de horror em Shakespeare.

Todas as versões cinematográficas que tive chance de assistir, desde a do Welles, de 1948, até a recente (e fenomenal) The Tragedy of Macbeth, de Joel Coen, em 2021, são cinema de horror em toda a sua glória, por mais que esse aspecto não seja lá muito comentado nas análises e revisões críticas.

Até o cartaz de Trono Manchado de Sangue (1957),
de Akira Kurosawa, lembra a estética
dos kaidan eiga dos anos 50 e 60
Por certo, não faltam teses e dissertações sobre o Throne of Blood (1957) de Akira Kurosawa, mas poucas destacam que ao reinterpretar a peça nos termos do teatro Noh e Kabuki, de modo a reambientá-la para o contexto do Japão feudal, Kurosawa se apropriou (e ajudou a estabelecer as bases) de um estilo que se tornaria o cerne do cinema de horror japonês nos anos 50 e 60.

Basta pensar em filmes como The Ghosts of Kasane Swamp, já de 1957, ou The Ghost of Yotsuya, de 59, seguindo até obras-primas como Kwaidan de 64 e The Black Cat de 68, para ver como os fantasmas estilizados, que tanto curtem fazer suas vítimas agirem como loucas na frente de amigos e parentes, se espalharam pelo terror japonês desde que o Banquo de Minoru Chiaki fez a alma de Toshirô Mifune sair do corpo durante o jantar no Castelo das Teias de Aranha. Isso sem contar a tenebrosa Lady Macbeth de Isuzu Yamada, deslizando pelas sombras com o pote de veneno nos braços, e a reinterpretação quase yokai das Três Bruxas amalgamadas na forma de uma andrógina feiticeira dos pântanos, vivida por Chieko Naniwa.

A feiticeira "yokai" de Chieko Naniwa,
em Trono Manchado de Sangue (1957)
de Akira Kurosawa.
Em outras palavras, para além de uma das melhores adaptações do bardo para as telas (ou A melhor, segundo alguns críticos), Trono Manchado de Sangue pode muito bem ser considerado um marco dos kaidan eiga, as típicas histórias de fantasmas do JHorror sessentista.

E antes que alguém diga que eu vejo horror em tudo,🤭 vale lembrar que a lendária versão de Rei Lear que o diretor lançou em 85 já não se encaixa no gênero de modo algum, por mais que seja tão estilizada e não-naturalista quanto. Ran é um drama épico, Kumonosu Jō é um épico de horror, e nisso se encaixa como uma luva nessa curiosa tendência ao macabro que parece atravessar tantas das adaptações de Shakespeare para o cinema.

"Mas e quanto ao The Tragedy of Macbeth de Roman Polanski?", me perguntaria você, sabendo muito bem que mais cedo ou mais tarde eu chegaria nele.

Francesca Annis assombrada pelo sangue em
The Tragedy of Macbeth (1971) de Roman Polanski.
Pois é. Como não, né?

Não discuto com quem defenda que a versão de Kurosawa é a melhor de todas, pode muito bem ser, mas o Macbeth de Polanski é algo que vai um tanto além das trivialidades de gosto ou mesmo da análise crítica.

Como se avalia uma adaptação que reinterpreta o cruel assassinato da família de Macduff com base em memórias de como os oficiais da SS saqueavam casas durante sua infância na Polônia? E será que a posição do corpo de Lady Macbeth depois de se jogar da amurada do castelo é de fato a mesma em que Sharon Tate foi encontrada em 1969, dois anos antes do lançamento do filme?

Jon Finch, a um passo da queda,
em The Tragedy of Macbeth (1971)
de Roman Polanski. 
"Deviam ter visto a minha casa no verão passado", teria dito o diretor aos membros da equipe, ao ser questionado sobre a quantidade aparentemente absurda de sangue falso utilizado durante as filmagens, deixando claro que a busca pelo horror em Shakespeare aqui nada tinha de prosaico. Poucas vezes o bardo seria traduzido para as telas de forma tão visceral. "Som e fúria", de fato. Especialmente fúria. Pra Polanski, a peça foi um tipo de grito e, talvez, uma dúbia tentativa de exorcismo.

Na euforia juvenil com que o casal apaixonado de Francesca Annis e Jon Finch planeja o assassinato do rei como se tudo não passasse de um jogo, apenas pra se ver esmagado pela realidade inexorável do ato ante a mera visão do sangue em suas mãos, Polanski não só aproxima a tragédia shakespeariana da subjetividade das audiências dos anos 70 de uma forma até então quase inédita, como evoca a derrocada dos valores da contracultura e a conspurcação do sonho do movimento hippie, representadas em desvios tão aberrantes quanto a Família Manson.

É uma leitura cruel, sem dúvida. Quase artaudiana. Não espanta que, na época, tenha sido tão má recebida e que sua reputação só tenha crescido desde então, independente das máculas que vão surgindo na biografia do diretor. Continua sendo a versão que mais recomendo a quem deseja conhecer a peça (quase) na íntegra, e de todas as adaptações de William Shakespeare que tive chance de assistir, a que me toca mais fundo.


Enfim, a conversa poderia continuar eternamente. O que não faltam são exemplos de adaptações de Shakespeare que se valem de (bem mais que) um ou outro elemento de horror.

Um cenobita para um novo remake de Hellraiser?
Não, é só a Laura Fraser na adaptação de
Titus Andronicus da Julie Taymor em 1999.😁
Das quase "cenobíticas" aparições mutiladas do Titus de Julie Taymor, passando pela inacreditável releitura trash cometida pela Troma em Tromeo and Juliet (sim, eu sei que a intenção era a comédia, mas cara, aquele troço me deu pesadelos!😨), chegando até a deslumbrante versão de 1979 de A Tempestade, na qual Derek Jarman tem as manhas de realocar a ilha de Prospero e seus habitantes fantásticos para uma legítima mansão gótica mal-assombrada, quase todas as facetas mais trevosas da obra do bardo tiveram chance de ser representadas e, acima de tudo, diversificadas. Até sci-fi horror teve! (embora eu deva admitir que as semelhanças entre O Planeta Proibido e A Tempestade me parecem um tanto vagas demais, até para um "livremente inspirado"🤔).

A Torre de Londres (1962)
de Roger Corman,
a versão gótica não-oficial
de Ricardo III.
Mas acho que um bom lugar pra gente fechar o assunto seria com o velho Vincent Price. E não, não me refiro ao seu genial Teatro da Morte, com o serial killer shakespeariano que despacha críticos teatrais com técnicas inspiradas nos assassinatos das peças (meu sonho🤗), ou mesmo o hilário Farsa Trágica, onde um "zumbificado" Basil Rathbone teima em ficar retornando dos mortos para recitar solilóquios aleatórios. Não, estou falando de A Torre de Londres, de 1962, uma pequena joia raramente mencionada entre os filmes baseados em William Shakespeare, decerto porque Roger Corman sequer tentou vendê-lo dessa forma.

Não há elucubrações filosóficas, nem diálogos rebuscados, só a trama extraída diretamente da peça Ricardo III e recontada da forma mais direta e acessível possível. E pra que? Ora, pra lança-lo como um terror gótico, bem no meio do então corrente Ciclo Edgar Allan Poe da AIP.

E "ornou" que é uma beleza, claro, afinal tinha tudo a ver: vilão deformado e diabólico, traições num castelo medieval, tortura, assassinato. Adicione aí uns plots emprestados de Macbeth e um ou outro fantasma pra dar uma liga à mistura, e voilá: temos um horror sessentista perfeito para nos lembrar que, seja no Teatro Elisabetano ou no cinema de massa contemporâneo, o tio Will é do povão.😉


E, pra fechar, um rápido tour pelo casarão assombr... digo, pela Ilha de Prospero de
A Tempestade (1979), do Derek Jarman,
com a deslumbrante dama gótic... digo, Miranda, de Toyah Willcox.😍