quarta-feira, 12 de abril de 2017

Afinal, Qual é o Áudio Original? - A Dublagem no Cinema Popular Italiano dos Anos 60 e 70


Uma questão que costuma confundir bastante a galera que começa a se aventurar pelo universo do horror gótico italiano, do giallo, dos spaghetti westerns, do peplum, enfim, do cinema popular italiano dos anos 60, 70 e 80: afinal, qual é o áudio original desses filmes?
"Ué?", alguém pode perguntar, "Se o filme é italiano então o áudio original é italiano, qual é a dúvida?". Pois é, foi justamente o que eu pensei quando baixei Suspiria séculos atrás, ainda no finado Emule: baixei um release com o áudio em italiano sem a menor dúvida de que seria o correto. Mas enquanto assistia comecei a achar esquisito. Os movimentos labiais dos atores não batiam com o áudio. Mais do que isso, prestando atenção nesses mesmos movimentos labiais dava pra notar que boa parte do elenco estava, na verdade, falando inglês! Dada a pouca experiência que eu tinha com o cinema italiano na época achei isso pra lá de bizarro. Tempos depois tive chance de comprar o DVD de Suspiria, lançado pela antiga Darkside London Films (uma edição dupla que hoje é considerada até lendária), e constatei, pelo menu de idiomas, que o áudio principal (incluindo até faixa em DTS) era na verdade em inglês!

Menu de idiomas do DVD de Suspiria
da Darkside London Films
Mas mesmo isso não resolveu a questão: ainda que o áudio em inglês combinasse muito melhor com os lábios dos atores, ainda assim era perceptível que a sincronia não era perfeita. Perplexo, eu me dei conta que o áudio em inglês também havia sido dublado!

Assim como eu fiquei com a pulga atrás da orelha na época, sei que muitos fãs em formação hoje em dia também ficam confusos. E, para um cinéfilo, alguém que quer assistir os filmes realmente completos, sem cortes e sem adulterações na trilha sonora pretendida pelo diretor, essa não é uma questão leviana. É comum amigos me perguntarem: "Rodrigo! Não consigo achar um release em italiano de La Maschera del Demonio, só acho dublado em inglês, sabe onde tem?" ou então "Meu, saiu Nightmare Castle em HD, mas a legenda em português disponível na rede não bate com as falas em italiano! Por que?!" Consultar o IMDb como forma de tirar a teima pode se mostrar até mais confuso nesses casos. Duvida? Dá uma olhadinha na página de Suspiria. No campo "language" você vai ver isso: "Italian | Russian | English | German | Latin"!!! What?!

Pois bem, vou tentar esclarecer esse mistério de forma bem didática:

Karloff exercitando seu melhor italiano
em Black Sabbath? Não exatamente...
A indústria cinematográfica italiana dos anos 60, 70 e 80 (assim como em boa parte da Europa), especialmente no que se refere a produções populares de baixo orçamento (o famoso cinema de gênero, que inclui, claro, o horror, o faroeste, o giallo, o peplum, o euro-trash, o cinema para o povão em geral) sempre foi, em grande parte, voltada para o mercado internacional. Produzir cinema apenas para o mercado interno era algo que simplesmente não compensava, sem contar que era muito comum a co-produção entre vários países como estratégia de viabilização de custos e distribuição. Com isso tornou-se parte integrante do próprio processo de produção em si a previsão do lançamento de várias versões de cada filme. No mínimo uma versão para mercado interno e uma para mercado internacional (leia-se: para os americanos, portanto em inglês) mas também era de praxe ter uma versão para cada país investidor ou para o qual já se tivesse fechado ou previsto um acordo de distribuição.

Havia também questões técnicas envolvidas, a captura de áudio era um procedimento mais complexo e caro do que hoje em dia, nem sempre ao alcance de orçamentos apertados. Quem manja de cinema brasileiro sabe que não faz tanto tempo assim que os filmes por aqui deixaram de ser dublados na pós-produção, mesmo sendo lançados apenas em português (José Mojica Marins sofreu com a mudança quando filmou Encarnação do Demônio, ele não estava acostumado a ter que se preocupar com pronunciar as falas corretamente durante as filmagens). Considerando essas dificuldades técnicas, mais a necessidade de atender vários mercados, a própria ideia de gravar as falas dos atores durante as filmagens não fazia sentido, era perda de tempo e dinheiro. Percebam que estamos falando de um paradigma muito diferente de países de língua inglesa, como EUA ou a Inglaterra, que sempre foram voltados em primeiro lugar para o mercado interno. O paradigma europeu era, por necessidade, cosmopolita, o que tornava os próprios sets de filmagem um ambiente muito diferente de um set americano. O trecho abaixo, extraído do documentário "O Oeste de Leone", dá uma boa noção de como as coisas funcionavam:


Pelo documentário dá pra entender porque a sincronia da dublagem de Suspiria não soava perfeita nem em italiano e nem em inglês: os atores literalmente não falavam a mesma língua no set! Porém, é inegável que o áudio em inglês parece fluir melhor do que o italiano e o documentário dá uma boa noção da importância e do cuidado dispensados com a versão para o mercado americano de Três Homens em Conflito. Não era pra menos: esse era o mercado que garantia o maior retorno, especialmente no caso dos faroestes.

Outra coisa que fica bem clara é que quando falamos em "versões" é no sentido literal mesmo. Não estamos falando simplesmente de uma dublagem feita a posteriori em cima de um produto já finalizado, mas sim da etapa final do processo de pós-produção. Não se tratava apenas de traduzir e dublar falas, mas de adequar essas falas e, muitas vezes, a própria história, de acordo com as demandas específicas de cada mercado. Não é por acaso que fosse tão comum a quantidade absurda de títulos diferentes para um mesmo filme. Filmes como Banho de Sangue, de Mario Bava, chegavam a ter dezenas de títulos, por vezes mais de um em cada idioma.

Um exemplo interessante das diferenças entre versões é o clássico Danza Macabra, de Antonio Margheriti. Na versão italiana fica explícito que a personagem de Margrete Robsahm nutre uma paixão lésbica ardente e não correspondida pela personagem de Barbara Steele. Mas na versão americana (chamada Castle of Blood) essa subtrama praticamente desaparece, as falas tornam-se leves insinuações, perceptíveis apenas para um público mais atento e fáceis de negar caso a censura implicasse. O motivo da diferença é simples: o mercado americano era muito mais pudico e melindroso do que o caliente mercado italiano. Prestem atenção nesse breve diálogo extraído do filme, primeiro em italiano, depois em inglês:


Também é digno de nota que em Black Sunday (La Maschera del Demonio), de Mario Bava, o casal de bruxos/vampiros vividos por Barbara Steele e Arturo Dominici são irmãos incestuosos na versão italiana e amantes comuns na versão americana. Há inúmeros exemplos como esses. Mas a coisa podia ir ainda mais longe: a uma certa altura Robsahm vai pras vias de fato e praticamente tenta violentar Steele. Obviamente essa cena teve que ser cortada da versão americana, mas com o relançamento do filme em DVD, décadas depois, surgiu um problema que provavelmente ninguém na época teria esperado: na era do DVD (e, posteriormente, bluray) a regra é muito clara: não pode haver cortes! Só que a cena cortada nunca chegou a ser dublada em inglês, afinal não era necessário. Como fazer então para reconstruir a versão mais completa possível do filme e mixa-la no DVD com disponibilidade de múltiplas faixas, ou seja, todas as versões num mesmo release? Ora, usando o áudio da versão mais completa, ou seja italiana, pra cobrir a lacuna na faixa em inglês.

Sim, você não entendeu errado. Você está lá, assistindo o filme, quando de repente o áudio em inglês muda pra italiano e depois volta para o inglês. É mais comum do que se imagina, se você nunca topou com um filme italiano com áudio múltiplo, acredite, mais cedo ou mais tarde você vai topar. Um caso célebre (ou infame) é o de Prelúdio Para Matar (Profondo Rosso), de Dario Argento. A faixa de áudio em inglês fica alternando de inglês pra italiano o filme inteiro, as vezes no meio de uma fala! O motivo é que enquanto a versão italiana tinha 126 minutos, a versão americana que foi lançada originalmente nos cinemas tinha só 96! Ou seja, quase um terço do filme nunca chegou a ser dublado em inglês na época. Para reconstruir uma versão em inglês para o mercado de home video sem os cortes o resultado teve que ser mais ou menos como vocês podem ver (quer dizer, ouvir) no vídeo abaixo:


Escolhi esse trecho propositalmente para poder chamar a atenção para mais algumas curiosidades. Reparem que a legenda é mais apurada nas partes em italiano. É porque ela foi feita para o áudio italiano, não para o áudio em inglês. Notem que conforme os personagens ficam mais distantes no enquadramento a própria sincronia da legenda começa a ficar falha. Isso é porque os dubladores não precisavam se preocupar tanto com as entradas das falas se os lábios dos atores não podiam ser vistos com clareza. Ou seja, as falas em italiano não necessariamente começam nos mesmos tempos que as falas em inglês. É por isso que não dá muito certo assistir a um release em italiano com uma legenda feita para a versão em outra língua. Simplesmente não vai bater, nem a sincronia e nem a tradução.

"Ok, beleza, entendiMas agora eu fiquei foi ainda mais confuso: italiano, inglês, francês, espanhol, alemão, enfim, qual é a porra do áudio certo?! Em que língua eu assisto?!"

Danza Macabra: para ver essa
cena, só em italiano,
mesmo na versão americana
Então, é isso que estou querendo dizer: todos os áudios são certos. Dentro desse sistema de produção, cada um desses idiomas é o "original". Não é como locar um filme americano aqui no Brasil e assisti-lo em português, o que significa que você está conscientemente optando por abrir mão de uma parte do filme (o áudio original) em troca de uma comodidade de tradução. Quando você vai assistir a um giallo, um gótico italiano, um western spaghetti, um peplum, etc, etc, e se depara com uma faixa em italiano, outra em inglês, outra em espanhol e ainda outra em francês, escolher entre elas é uma escolha por qual versão você prefere, todas são igualmente dubladas. Um cinéfilo mais destemido ou um pesquisador pode até optar por assistir todas as versões, mas não é uma opção razoável para um público comum, até porque as versões não são tãããão diferentes assim.

Alguns exemplos que eu mostrei acima podem dar a impressão de que, apesar de tudo o que eu falei, assistir um filme italiano em italiano ainda é o mais correto, afinal a versão mais completa de Profondo Rosso é em italiano e a versão sem censura de Danza Macabra também é em italiano. Mas não esqueçam que a versão mais bem acabada, mais difundida e mais celebrada de Três Homens em Conflito é em inglês (assim como a maior parte dos westerns spaghetti, por razões óbvias). Suspiria também deve ser assistido em inglês, a maioria dos atores claramente falava inglês no set e a faixa em italiano soa muito mais "dublada". De fato, a partir dos anos 80 houve um direcionamento maior para as produções em inglês no cinema de horror italiano. Todos os filmes do Argento, Lucio Fulci, Michelle Soavi foram pensados pra serem assistidos em inglês, ainda que o esquema de dublagem em pós-produção continuasse rolando. Filmes dos anos 60 e 70, entretanto, não tem uma regra clara pra decidir qual versão dar preferência. Cada caso é um caso, e cada caso envolve escolhas e perdas.

The Blood Spattered Bride:
o filme é espanhol mas, se
puder escolher, assista em inglês.
Por exemplo, optar por Danza Macabra em italiano te propicia uma versão mais completa do filme, mas você perde a voz da britânica Barbara Steele. Não que assistir versões em inglês te garantam ouvir a voz verdadeira de um ator não italiano (ou mesmo dos atores italianos nas versões italianas, se quer saber). Christopher Lee foi dublado por anônimos na maioria dos filmes europeus de língua não inglesa em que atuou. Por outro lado, a versão em inglês do lendário clássico da Sessão das Dez, O Expresso do Horror, é imbatível justamente porque Christopher Lee e Peter Cushing dublaram suas próprias falas. O diretor Eugenio Martín não estava nem aí para a versão em espanhol, seu alvo era o mercado britânico e fãs da Hammer Films em geral. Muitos filmes de horror espanhóis dos nos 70, como The Blood Splatered Bride, foram rodados em inglês justamente por esse motivo. Mesmo assim, ainda prefiro assistir os filmes do ator e diretor espanhol Paul Naschy (pseudônimo de Jacinto Molina) em espanhol, pela sonoridade que parece dar um sabor especial a essas produções tão exóticas.

E se minhas escolhas servem como critério, devo dizer que o que aprendi garimpando esse universo do cinema de horror europeu dos anos 60 e 70 foi a não esquentar tanto a cabeça com qual versão eu vou assistir. Deixar as circunstâncias decidirem por mim: O release em bluray que apareceu na rede está em inglês? Beleza, vamos ver em inglês. Está em italiano? Sem problema também. Opa, mas a legenda que tem disponível no OpenSubtitles foi feita para o áudio em inglês? Melhor caçar um release com áudio em inglês, então. É meio por aí. De modo geral os releases mais fáceis de achar são aqueles com a versão mais difundida, mais completa, mais "oficial", por assim dizer, e aí é quase automático que as legendas disponíveis sejam feitas para essas versões. É o caso, por exemplo, de Suspiria, Inferno, The BeyondBlack SundayExpresso do Horror, Por um Punhado de Dólares, Django, Keoma, Planeta dos Vampiros, todos dublados em inglês. Ou de Black Sabbath, Kill Baby Kill, Todas as Cores da Escuridão, Blood and Black LaceOs Longos Cabelos da Morte, etc, disponíveis quase que só dublados em italiano.

As vezes rolam uns casos mais complicados, por exemplo: todos os releases com boa qualidade para Lo Spettro (The Ghost), de Riccardo Freda, provinham de um DVD francês que disponibilizava apenas o áudio em inglês, mas a única legenda disponível fora feita para um release italiano de péssima qualidade, provavelmente ripado de um VHS. Esse foi um caso em que achei melhor fazer uma legenda nova para o áudio em inglês. Não dava pra tolerar aquele release medonho. Também acontece muito de você ter em mãos uma legenda que não bate direito com nenhum áudio, o que acaba fazendo você ficar alternando as faixas enquanto assiste (acontece muito com filmes como os do Jesus Franco, co-produções tão mescladas que podem ser encontrados em uma porrada de idiomas e versões diferentes).

Ultimamente o site de torrents Rarbg.to tem postado vários releases em HD de clássicos do gótico italiano como, por exemplo, Danza Macabra, L'orribile segreto del Dr. HichcockLa morte negli occhi del gatto, filmes que, até então, estavam disponíveis apenas em DVDrip. Seria uma notícia maravilhosa, se o Rarbg não estivesse dando total preferência para o áudio em inglês e simplesmente deixando de fora dos releases as faixas em outras línguas. O problema é que na internet só tem legendas para o áudio italiano desses filmes. Aí, para os cinéfilos de plantão, resta escolher entre 1) Assistir em inglês sem legendas (nem todo mundo dá conta); 2) Tentar usar as legendas para italiano no áudio em inglês (acreditem, é enervante); 3) Garimpar em fóruns privados e rincões obscuros da web em busca dos raros releases com áudio em italiano (nem todo mundo tem acesso ou paciência pra isso) ou 4) Esperar aparecer (ou fazer) uma nova legenda para o áudio em inglês.

Eu, particularmente, vou continuar com meus DVDrips mais um tempo, muito obrigado.

Pois é, meus caros, garimpar cinema alternativo não é pra amadores...  😉

3 comentários:

  1. Caraca,esse post foi muito esclarecedor!! Ainda que o audio original seja uma regra para quem ama cinema, saber dessas histórias torna a experiencia mais interessante...muito obrigado ^^

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  2. Tava encucado aqui com os releases de "Suspiria" e "Prelúdio para Matar" que achei na net, mas agora tudo foi esclarecido HAHAHA

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