Poucos ciclos do cinema de horror tiveram um apogeu e queda tão absolutos quanto os famigerados
. Do sucesso estrondoso de
" praticamente dominou a primeira década do século XXI. Até que, quase tão subitamente quanto surgiu, o subgênero simplesmente... foi-se! Tipo, ok, ainda aparecem uns retardatários aqui e ali mas, além de não chegarem nem perto do antigo sucesso, agora meio que chegam a causar uma certa ojeriza nos fãs do gênero. 🤔
Tá certo que o cinema de horror sempre seguiu uma lógica de "ciclos", com cada nova fórmula bem sucedida nos cinemas sendo repetida em trocentas variações até o quase total esgotamento. Tivemos os ciclos góticos na Inglaterra, EUA e
, um ciclo de monstros atômicos nos anos 50, um ciclo de animais selvagens inspirado em
. Evidente que o fator financeiro teve um papel fundamental.
eram filmes notoriamente baratos de produzir, algo determinante para um gênero como o horror, que sempre teve que lidar com orçamentos apertados. O velho
nos anos 80 não foram as qualidades artísticas mas o simples fato de ter feito muito dinheiro sem gastar quase nada. Mas além de parecer pouco para explicar o fenômeno dos
, meio que não explica a aversão que a fórmula amarga hoje em dia. Tipo,
ainda são bastante cultuados pelos fãs fiéis e eu mesmo corro pra assistir qualquer gótico vintage que apareça, mas mesmo com toda a nossa cultura da nostalgia me parece difícil imaginar que um eventual revival dos
causasse o mesmo tipo de devoção.
Sendo muito sincero, eu sequer imaginaria que algum dia iria dedicar qualquer tipo de reflexão mais séria aos
, quanto mais que acabaria escrevendo um artigo sobre eles aqui para o blog... até que me peguei refletindo um bocado a respeito numa situação que não tinha aparentemente nada a ver com o assunto: durante a leitura de um conto de horror gótico escrito em 1908! Quase cem anos antes da estréia de Bruxa de Blair:
.
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Maravilhosa ilustração de M. Leone Bracker
para a edição original de "Wandering
Ghosts", onde "The Screaming Skull"
saiu pela primeira vez. |
O Crânio Uivante (também traduzido como
O Grito da Caveira) é literalmente sobre aquilo que o título diz: um crânio humano, cuidadosamente acondicionado numa caixa de chapéus guardada em cima de um guarda-roupa, que
grita e chora no meio da madrugada e, aparentemente, possui a intrigante habilidade de
se mover sozinho quando ninguém está olhando! Escrito pelo grande romancista ítalo-americano
Francis Marion Crawford, autor de alguns dos maiores clássicos da literatura fantástica de todos os tempos, como
Por que o sangue é a vida e
Na cabine do Navio,
The Screaming Skull tem como protagonista o atual proprietário de uma velha mansão sinistra que outrora pertenceu à antiga dona do tal objeto choroso (quero dizer, quando viva), um velho marujo que acredita ter inadvertidamente sugerido, numa infeliz noitada regada a vinho e histórias do mar, o método pelo qual a pobre mulher acabaria sendo assassinada pelo próprio marido, motivo mais que suficiente para supor que seus restos mortais ainda devem lhe guardar algum rancor.💀
Uma sinopse diabolicamente divertida, não? Mas o que torna
O Crânio Uivante realmente especial não é o enredo, mas sim a forma inusitada com que Crawford nos conta essa história. Em princípio trata-se de uma narrativa em primeira pessoa, com o bom e velho protagonista-narrador tão típico da literatura gótica. Até que a gente começa a se dar conta de que o
ponto de vista pelo qual a trama está sendo efetivamente vivenciada não é, como de hábito, o do próprio narrador, mas sim o ponto de vista de um "amigo" que está lá ouvindo a história, um personagem que não tem nem nome e nem voz, mas está presente e, de fato, participando da ação. Talvez fique um tanto difícil entender o que quero dizer, então sugiro que
leiam o conto e depois continuem aqui. Pra facilitar, aí vai um trechinho:
Aqui está a caixa. Trouxe-a com muito cuidado, para não perturbar a pobre coisa. Sabe, se eu a sacudisse, podia ser que a mandíbula se soltasse dela de novo, e estou certo de que ela não gostaria. Sim, a vela apagou quando eu estava descendo, mas foi devido a uma lufada de vento que entrou por uma fenda da janela que fica sobre o patamar. Ouviu alguma coisa? Sim, ela gritou de novo. Você está dizendo que estou pálido? Isto não é nada. Meu coração, às vezes, fica meio alterado, e subi muito depressa. Realmente, esta é uma das razões pelas quais prefiro morar no andar térreo.
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Edição original de "Wandering Ghosts", volume de contos de Marion Crawford, que inclui Por que o sangue é a vida,
Na cabine do Navio e The Screaming Skull.
(Como sempre, nunca publicado completo no Brasil)
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Percebem a diferença em relação à narrativa em primeira pessoa mais convencional? Normalmente, nesse tipo de estrutura, temos um narrador que supostamente escreveu de próprio punho o texto que estamos lendo, relatando acontecimentos que ou vivenciou ou que tomou conhecimento. No primeiro caso temos um protagonista-narrador, no segundo caso um narrador que conta a história do protagonista, ocasionalmente participando da ação, mas sempre apresentando-a pelo seu próprio ponto de vista. Um dos exemplos mais célebres, claro, seria o
Drácula de Bram Stoker, que vai alternando esses pontos de vista narrativos simulando diários, memorandos, cartas e até gravações em cera. Mas pode-se também tranquilamente dispensar esses truques e não fazer menção alguma ao "suporte" da narração, o personagem-narrador apenas "fala" em primeira pessoa e tá tudo certo, o leitor entende e supõe que está lendo um relato de fatos pretéritos, escrito em algum momento
a posteriori.
Já em
O Crânio Uivante o narrador sistematicamente se dirige a alguém que está presente em cena "
em tempo real". Isso por si só até que não teria nada de mais, basta lembrar da primeira linha de
A Morta Amorosa: "
você me pergunta, irmão, se amei, digo-te que sim..." dando a entender uma narrativa oral dirigida a alguém que estaria ali "presente", mas
Théophile Gautier não leva isso muito além de um floreio para gerar uma sensação de intimidade entre o leitor e o protagonista. No restante do conto temos uma narração em primeira pessoa perfeitamente normal, em todos os aspectos, tanto que nem pensamos duas vezes nesse hipotético "ouvinte" (que, ao fim e ao cabo, é o próprio leitor, passivo e descolado da ação). Mesmo no muito mais sofisticado
O Morro dos Ventos Uivantes, em que a história de Heathcliff e Catherine é inteiramente narrada pela criada Nelly para o locatário da Granja da Cruz,
Emily Brontë mantém esse ouvinte perfeitamente passivo, de modo que só lembramos da existência dele quando o relato precisa ser interrompido ou pontuado de alguma forma. Já no
O Crânio Uivante... bom, digamos que a brincadeira vai um pouco mais longe que isso:
Apanhe-a! Foi apenas o vento que a fez rolar pelo chão, mais nada . .. estou-lhe dizendo que lá fora está soprando quase um furacão. Apanhou a coisa? A caixa de chapéus está em cima da mesa, Espere um minuto, até eu passar a tranca. Pronto. Por que você jogou a caveira na caixa com tanta força? Ela não gosta disso, sabe? O que está dizendo? Mordeu sua mão?
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Versão brasileira da série
Choose Your Own Adventure. |
Tecnicamente falando, o texto de
Crawford quase nem se encaixa mais na classificação de "primeira pessoa". Estaria mais pra... "segunda pessoa"?! Sinceramente, não me lembro de ter topado com nada parecido na literatura em geral, exceto aqueles
livros-jogos estilo
Escolha a sua Aventura que se tornaram populares a partir dos anos 70, esses sim escritos efetivamente na segunda pessoa, com um narrador-onisciente se dirigindo direto ao leitor: "
Você segue pelo corredor e se depara com uma porta e uma escadaria. Se quiser subir a escadaria, vá pra pg. 45, se quiser abrir a porta, pg. 121". Guardando as devidas proporções, a impressão que
O Crânio Uivante provoca é bastante similar, uma sensação de estar "dentro" da história, "vendo-a" se desenrolar com os "seus próprios olhos".
Parece familiar, não é? Pois é, conforme eu avançava na leitura e ia "vivenciando" (com o "olho da mente") o velho marujo me conduzindo pela casa sombria e abrindo a caixa bem na minha frente pra me mostrar o tal do crânio, me vi sendo remetido a todos aqueles
found footages do começo do século XXI, especialmente
[REC], com sua narrativa toda focada no ponto de vista de um cinegrafista que segue a protagonista o filme inteiro sem nunca ter seu rosto revelado ("
Pablo, grabalo todo. ¡Por tu puta madre!"). E aí comecei a pensar: "
Mas, que estranho... por que só nesse conto? Por que todas as outras narrativas em primeira pessoa que já li nunca me remeteram aos found footages
como esse está fazendo agora?"
Me pareceu uma boa pergunta... Afinal, deixando de lado os pretextos, suportes e justificativas, o
found footage nada mais seria do que uma narrativa em primeira pessoa
cinematográfica, aquilo que no jargão do cinema chamamos de
ponto de vista subjetivo ou, mais materialmente falando,
câmera subjetiva. Ou seja, o "olho" da câmera, que normalmente já se identifica com o "olho" do espectador, coincide agora também com o "olho" de um personagem que está lá, participando da história. Obviamente não se trata de um recurso inédito ou mesmo incomum, há exemplos de usos de câmera subjetiva por toda a história do cinema, mas normalmente restrito a sequencias específicas em certos momentos mais significativos de um filme. A razão do recurso ter sido elevado à categoria de um subgênero cinematográfico justamente do gênero do horror é, em grande medida, a mesma que tornou a narrativa em primeira pessoa uma das favoritas dos escritores do gênero desde os primórdios da literatura gótica ainda no século XVIII: a velha e boa suspensão de descrença.
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Dr. Seward firme e forte registrando tudo no
seu gramofone em Drácula
(aqui na versão de Coppola de 1992). |
A grande questão da literatura fantástica sempre foi seduzir o leitor a desencanar da mera realidade durante a leitura, convence-lo de que é muito mais legal topar brincar também, que vale a pena aceitar o "realismo fantástico" proposto pela história. Ao emular o ar de autenticidade de um testemunho, especialmente simulando algum tipo de documento, o escritor basicamente está dando uma piscadinha esperta para seus leitores, do tipo:
sim, sim, eu sei (e vocês sabem) que vampiros não existem, mas e se eu te mostrar esse memorando aqui de um médico alemão que... Essa é a "deixa" para que o leitor acione o modo "
eu quero acreditar" que está sempre ali dormente sob toda a nossa herança racional científica secular, pronto a se manifestar ao primeiro sinal de
dúvida razoável. E entre todos os gatilhos possíveis para conjurar um desejado "será?", poucos são tão sedutores quanto o vovô ou a vovó contando um
causo que vivenciaram pessoalmente quando jovens. É essa sensação de cumplicidade que o uso constante da primeira pessoa na literatura de horror sempre tentou emular.
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[REC] de 2007, na minha opinião o mais bem sucedido
de todos os found footage, justamente por, como diz o
título, focar na linguagem em si, não no enredo. |
Os
found footage, a princípio, estariam buscando o mesmo efeito no suporte cinematográfico. Valer-se da aura de "suprema autenticidade" da "filmagem amadora" para obter um resultado similar ao de todos aqueles diários, cartas e memorandos escritos "de próprio punho". Poderíamos suspender nossa descrença tranquilamente, afinal o que a câmera fotografa, segundo o senso comum, nada mais é do que a realidade em si, a realidade do que estava bem ali, na frente da câmera quando o cinegrafista a operou. Quando o zumbi avança em direção ao pobre Pablo (e, por tabela, em nossa direção) o "efeito de realidade" seria até mais intenso e instantâneo do que qualquer documento escrito necessariamente
a posteriori. A filmagem pode até estar sendo assistida
a posteriori, mas o que o olho da câmera "viu" seria a experiência real, crua e direta. No seu melhor, o cinema
found footage atingiria um poder de convencimento muito além de qualquer outro formato, o que para o horror (que ambiciona, acima de tudo, atingir o espectador da forma mais emocionalmente direta e primitiva possível) seria simplesmente o melhor dos mundos possíveis.
Só que... não. Suponho que a essa altura você já está se ligando de onde quero chegar, especialmente se já assistiu a uma quantidade razoável de
found footages. O mesmo suporte que permite esse "efeito de realidade" de forma tão intensa num primeiro momento, rapidamente começa a nos parecer frágil já num segundo momento. Revendo
A Bruxa de Blair dias atrás, pesquisando pra esse artigo, não pude deixar de rir ao constatar que mesmo lá, no primeiro grande
found footage de sucesso, já tínhamos a confissão implícita do maior calcanhar de Aquiles do subgênero: "
Largue a câmera, não tem graça." "
Estou rindo, por acaso?" "
Não, mas continua fazendo essa porra de documentário!"
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A melhor defesa é o ataque. Bruxa de Blair
se antecipando ao maior calcanhar
de Aquiles dos found footages. |
Pois é, não demorou muito pra
todo mundo começar a se perguntar a mesma coisa e a quantidade de boas justificativas se revelou bastante limitada. Você até podia dar a desculpa de um protagonista obsessivo (tipo
Bruxa de Blair), ou usar o pretexto do herói jornalista (tipo
[REC]), ou driblar o problema se valendo de câmeras pré-instaladas e automáticas (como
Atividade Paranormal), ou até dar uma de "pós-moderno" e incluir um ou outro diálogo sobres os efeitos das tecnologias multimídia na nossa psiquê e coisa e tal... Mas cada uma dessas justificativas funcionava no máximo uma ou duas vezes, ou nem isso. Dramaturgicamente não havia muita saída exceto assumir o absurdo e brincar com ele (como
Diário dos Mortos de Romero e, se for ver, boa parte das sequências dessas mesmas franquias de sucesso), mas o fato é que a maior parte dos espectadores não aceita muito bem esse tipo de abordagem mais metalinguística, a não ser como comédia. Resumindo, depois de três, quatro, talvez cinco variações de
found footage, a platéia simplesmente começa a
se recusar a jogar e aí... bom, não há o que fazer. A tal "aura de intensa realidade" dos primeiros grandes títulos do subgênero se mostrou tão frágil como uma bolha de sabão e os
found footages deterioraram em tempo recorde de "assustadores" para "irritantes".
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Atividade Paranormal 3, praticamente esgotando
todos os truques que ainda restavam pra
justificar as manipulações de câmera e já
começando a partir para o escracho.
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"
Então", poderíamos nos perguntar, "
usar a primeira pessoa como recurso para suspensão de descrença é algo que só funciona de fato na literatura, não no cinema?" Bom, aparentemente sim, afinal não vemos as pessoas revirando os olhos ao abrir um livro e soltando "
Affe, tá em primeira pessoa de novo essa merda!" do mesmo modo que soltam um "
Affe, outro found footage!" ao começar a assistir um filme no
Netflix, isso é fato. Mas, afinal, por que não? Por que aceitamos tão tranquilamente um narrador que, logo depois de ver as noivas de Drácula jantando um recém-nascido, tem o sangue frio de sentar e escrever um relato completo e detalhado (em taquigrafia!) ao invés de cair em posição fetal e nunca mais levantar? Por que não estranhamos nem um pouco que Laura seja capaz de recordar os diálogos exatos que teve com
Carmilla décadas atrás, a ponto de registra-los bonitinho com quebras de linha e travessões? Por que sequer nos damos conta de que a criada Nellie muda constantemente de sotaque e maneirismos de fala enquanto conta a história de Heathcliff e Cathy, quase como se estivesse "interpretando" seus papéis diante do locatário da Granja? (Sem contar as inúmeras vezes que dá detalhes sobre episódios que
não testemunhou pessoalmente!) Como é que aceitamos tão de boa que o narrador de
A Casa Sobre o Abismo continue escrevendo seu diário freneticamente até que as coisas inomináveis estejam literalmente arrombando sua porta, mas não conseguimos aceitar que Micah corra primeiro pra pegar a câmera e só depois tente fugir do demônio, em
Atividade Paranormal? 🤔
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Neil Gaiman dando uma zoadinha (com todo respeito)
nas convenções do uso de primeira pessoa nas
narrativas de horror.
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Mas o que eu quero dizer com tudo isso? Que os clássicos literários tem os mesmos defeitos dos modernos
found footages? Nã-não, crianças! Estou chamando a atenção para o fato de que a suspensão de descrença não é, como dita o senso comum, uma responsabilidade exclusiva do autor, mas também do leitor. É um acordo tácito com regras não escritas, mas que precisa ser cumprido por
ambas as partes para que a mágica narrativa funcione. Mesmo que o autor cumpra sua parte o melhor possível para seduzir o leitor a jogar o jogo narrativo, dramaturgicamente sempre haverá um limiar no qual o leitor pode simplesmente se recusar a jogar e, quando isso acontece, não há o que fazer. Nem o melhor autor do mundo pode te convencer de que todas aquelas cartas, diários e recordes de jornal de sua narrativa em primeira pessoa são efetivamente "reais" porque... ora, porque não são! E o leitor obviamente sabe disso, apenas se dispõe a entrar no jogo, porque QUER entrar no jogo. Desde que o autor não force demais a barra a ponto de nos arrancar de nosso auto-induzido transe (tipo, fazendo o personagem escrever a própria gargalhada, "Há, Há, Há", como
Robert E. Howard faz em
Aqueles que Moram Sob as Tumbas 😂), o leitor nem vai prestar atenção nas aparentes incongruências que mencionei acima. Ou, mais especificamente, as aceitará como aquilo que de fato são: convenções narrativas.
O que estou realmente querendo apontar aqui é que quando saímos do papel de
leitores de literatura e assumimos o papel de
espectadores de cinema, tendemos a nos tornar muito
menos dispostos a "entrar no jogo", tornamo-nos muito mais intolerantes com qualquer pequeno sinal de, nem digo quebra, mas de abalo na "aura de realidade" proposta pela narrativa, hiper atentos até à mais sutil das inverossimilhanças, tomando como "furos" quaisquer convenções narrativas que se deixam notar de forma um tantinho mais evidente. O fato é que no decorrer da história do cinema, nós fomos sendo basicamente adestrados a esperar cada vez mais que um filme por si só, sem nenhum auxílio perceptível de nossa parte, nos convença de sua objetiva "realidade", a ponto de reagirmos de forma desproporcional se essa expectativa for frustrada de qualquer forma que seja.
É interessante essa “formação reativa” das pessoas diante de narrativas fílmicas inverossímeis. Por trás esconde-se uma percepção realista não só do cinema como também das imagens (fotografia, audiovisual etc.). A imagem não seria apenas representação, mas um documento da realidade. Por isso, a expectativa do público é de narrativas lineares e verossímeis. Mesmo nos filmes repletos de computação gráfica, os efeitos digitais reduzem-se à figura de hipérboles, isto é, de exagerar ou ampliar os efeitos de realidade. (Classes Médias exigem Cinema com Ficção "Realista")
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Versão cinematográfica de O Crânio Uivante,
lançada em 1958. Obviamente nem tenta
emular a peculiar estrutura narrativa do conto e
o resultado, claro, é pouco mais que medíocre. |
Num livro, seja numa narrativa em terceira pessoa com o famoso narrador onisciente (narrador não-personagem) ou numa história em primeira pessoa com todos os truques de verossimilhança que mencionamos acima, o que temos objetivamente diante de nossos olhos são apenas
letras impressas no papel. Não temos como nos furtar ao trampo de conjurar a história ali escrita com nossa própria imaginação. Simplesmente
precisamos jogar o jogo! No cinema, a ilusão naturalista intrínseca às imagens e sons mecanicamente capturados e reproduzidos "em tempo real" diante de nossos olhos tende a nos deixar mal acostumados, a esperar que o filme faça todo o trabalho imaginativo por nós. E o que acaba rolando com os
found footage é que eles acabam, sem querer, intensificando ainda mais essa tendência. Ao propor uma estética narrativa ainda mais apoiada na ilusão de realismo que atravessa o cinema como um todo, de certo modo acabam, por assim dizer, elevando o valor das apostas. Conseguem obter, num primeiro momento, um nível de identificação muito acima da média, sem dúvida, mas essa mesma proximidade os torna ainda mais vulneráveis ao escrutínio impaciente do espectador, ainda menos disposto a aceitar o jogo do que nos filmes mais "normais". Enfim, colocam-se numa berlinda que, no limite, não pode mesmo ser sustentada por mais do que uns dois ou três títulos pioneiros.
Quando
Francis Marion Crawford brinca com as convenções literárias da "primeira pessoa" em
O Crânio Uivante é óbvio que sustentar uma "aura de realidade" já não é mais o seu interesse, mas justamente chamar a atenção para os artifícios das narrativas fantásticas. Não pra critica-las ou desmonta-las, mas para propor um jogo entre amigos, uma divertida e bem humorada brincadeira de salão na qual o escritor (no jargão teatral/cinematográfico) "quebra a quarta parede" e inclui o leitor na ação sem nenhuma tipo de pretexto, justificativa ou desculpa, apenas "falando conosco", "pessoalmente". E o mais fascinante é que, mesmo com todo o senso de ironia e o humor intrínseco a essa abordagem, Crawford jamais permite que a história descambe para a simples sátira. Para todos os efeitos,
O Crânio Uivante continua sendo uma história de horror, equilibrado cuidadosamente o
nonsense com um tom grave e uma atmosfera macabra e trágica.
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